Há cerca de trezentos anos vivia perto de Dan no Ura o célebre tocador de biwa (Alaúde) conhecido pelo nome de Hoichi. Era cego. Seria, porventura, a sua enfermidade a causa do seu talento? O fato é que ele tirava do instrumento tonalidades de tal pureza que arrancavam lágrimas de todos. Ali perto, erguia-se o Templo Amida, cujo chefe, um velho mestre, gostava muito dele e, sendo Hoichi muito pobre, lhe oferecera hospitalidade num canto do seu templo.Numa noite de verão, Hoichi, sentado à beira da galeria circular, perdido na contemplação das estrelas, esperava o regresso do mestre, que saíra para realizar cerimônias em casa de seus fiéis. De repente, o seu silêncio foi interrompido pelo som de passos não familiares aos seus ouvidos. Era um samurai couraçado de armadura, que se acercou e disse-lhe: - Não temais. Sou um mensageiro que veio buscar-vos da parte de uma família de aristocratas, de grandes e nobilíssimas personagens. Eles quiseram ver o campo de batalha de Dan no Ura, e vieram em segredo a esta província, em companhia de uma corte importante. Ouviram falar do vosso tão decantado biwa, e desejam ouvir-vos tocá-lo. Hoichi não tinha vontade alguma de mexer-se, mas o potente samurai agarrou-lhe a mão e arrastou-o. Ele deixou-se guiar e, logo, se achou defronte de um grande palácio. Abriu-se o alto portal; importantes oficiais, altos dignitários, mulheres lindamente vestidas com trajes antigos estavam à sua espera. Bem no centro da grande assembléia, num lugar mais elevado, sentara-se uma mulher de soberbo porte. Pedem-lhe que toque. Suas melodias, como sempre, arrancam suspiros de admiração e comoção. - Minha respeitabilíssima senhora ficou muito satisfeita de ouvir-vos, vós a encantastes. Voltai todas as noites. Depois de cada recital haverá uma recepção, e sereis recompensado. Uma jovem de suma nobreza deseja casar-se convosco. Não faleis disso a ninguém. Guardai segredo. Ele estava um pouco assustado, mas curioso. O samurai acompanhou-o de volta ao Templo Amida. Na outra noite e na seguinte repetiu-se a aventura. Ao cabo de uma semana, o chefe do templo começou a inquietar-se daquelas vagueações noturnas, sobretudo porque Hoichi assumíra um ar estranho, desorientado e distante. Perguntou-lhe: - Por que não dormistes aqui nesta noite e nas anteriores? Aonde ides? Tendes alguma amiga? - Não, não; é um segredo - respondeu vagamente Hoichi. O mestre decidiu mandar segui-lo. Dois discípulos foram enviados atrás dele com esse propósito, mas os caminhos tomados por Hoichi desafiavam quem quer que fosse a acompanha-lo. Poder-se-ia até pensar que ele voava. Tendo perdido totalmente o seu rasto, os dois se prepararam para procura-lo. Encontrar Hoichi naquela região selvagem, durante a noite, só mesmo por um milagre. Tomaram, portanto, o caminho de volta para casa; e estavam passando diante do cemitério do Templo Amida, Quando ouviram pasmos o som do biwa. Precipitaram-se na direção do som e avistaram. Hoichi sentado diante dos túmulos do clã Heike.A chuva lhe encharcara as vestes, mas ele estava tão absorto na execução do instrumento que não se dava conta de mais nada. Os amigos chamaram-no: - Hoichi. . . Hoichi. . . O tocador de biwa, contudo, não parecia ouvir coisa alguma. Bateram-Ihe no ombro. Tornaram a chamá-lo, voltaram a sacudi-lo, até que ele, afinal, notou-lhes a presença. Quando voltaram, os dois discipulos contaram tudo ao chefe do templo, que ficou estupefato: - Hoichi está doente. Os espiritos dos Heikes o penetraram! Se continuar assim mais uma semana, acabará morrendo! - Estais louco - contraveio o mestre. - Conheço um método; é preciso fazer um kito (Oração de Exorcismo) sem demora, exorcizar o mal. Despi-o. Em seguida, ordenou aos discipulos que lhe trouxessem o seu material de caligrafia: tinta, pincéis, pedra. E, lentamente, principiou a pintar em toda a superficie do corpo de Hoichi O Sutra da Grande Sabedoria, o Hannya Shingyo. Tudo ficou recoberto, do coruto do crânio à planta dos pés, com as palavras do sutra. Feito isso, dirigiu a Hoichi a seguinte recomendação: - O samurai, sem dúvida, voltará, mas não lhe respondais. Continuai fazendo zazen, shiikantaza.Não esboçais um movimento sequer. Cantai o Hannya Shingyo em voz baixa. Dessa maneira podereis escapar ao samurai e ao malefício. À noite, o samurai voltou, mas não lhe foi possível ver Hoichi. Somente o biwa estava encostado na parede. Olhou, olhou e, suspensas no ar, avistou duas orelhas. Reconheceu-as: As orelhas de Hoichi! Ele se transformou em fantasma! Puxou, arrancou-lhe as orelhas e levou-as consigo. Hoichi não experimentou uma dor muito intensa, senão um grande frio. O sangue escorria. No dia seguinte, o chefe do templo veio ve-lo: - Maldição! - exclamou. - Perdestes as orelhas! Esqueci-me de escrever nelas o Hannya Shingyo. Que erro imperdoável cometi! Ele estava realmente transtornado. Hoichi, porém, recobrou-se depressa. Com o passar do tempo, tornou-se famoso sob o nome de "Hoichi, O sem orelhas (Miminashi Hoichi)". Sua arte do biwa nem por isso se alterou. Ao contrário, à proporção que o tempo passava, ele não cessava de superar-se, para grande assombro de todos os amantes de biwa, de todos os poetas e músicos, de todos os artistas, de todos os monges e mendigos, das mulheres e das crianças. Nem o labrego mais achovascado conseguiria permanecer insensivel ao som do seu biwa. Ele continuou a ser, sem contestação, o mais notável tocador desse instrumento.
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Histórias japonesas
Fiksi UmumOlá, este livro está aqui para disponibilizar a você leitor, histórias e lendas do Japão. Desde contos infantis e românticos aos mais mais macabros contos de terror. Espero que gostem muito.