Penso imenso...
Quem seria eu se tivesse nascido, sei lá, do outro lado do mundo? Seria mais alto? Mais baixo? Gordo Magro? Rico? Pobre?
Penso, penso e volto a pensar. E se tivesse estudado mais?
Desisti dos estudos a meio do 7 º ano. Não era mau aluno, até me considero inteligente, mas sei lá, tudo na escola me saturava, professores, maus colegas, as secas...Tinha disciplinas que até gostava, ou parecia que me sentia menos frustrado. Era em aulas de musica e desenho, pois não tinha de decorar muita matéria, mas nunca tive paciência para me manter nos estudos e por isso continuo a pensar... Porque não nasci eu do outro lado do mundo? Seria mais feliz? Menos feliz? Perco ou direi, gasto imensos minutos a pensar nisso. Tenho um pensamento super navegante, facilmente paro e dou por mim com o olhar em «posição de fixação» e navego, navego e navego com o pensamento. Penso em cenas importantes e até pouco importantes. Necessidades e coisas tolas.
Saí do meu emprego há pouco. Já são 19h20. Já está um pouco escuro e estou cansado. Vou a pé calmamente até casa. Hoje não trouxe o carro. Cansado sim, o trabalho é duro e até acho que se aproveitam de mim e que se folgam de certos serviços e os entregam a minhas obrigações. Trabalho num talho da parte velha da cidade, um talho de tradição e boa clientela. Sou ajudante de talhante, já atendi clientes ao balcão, mas basicamente estou sempre na sala de interior a raspar ossos, limpar peles e curatos, a carregar carcaças de animais, a varrer e a lavar o espaço. O chefe, o Sr.Júlio Pablo, diz que tenho de dar tempo ao tempo para começar a servir ao balcão, mas já ando nestas esperanças há quatro anos e meio. Já manobro bem as facas, ou seja, já sei afiar e sinto-me confortável a trabalhar com as facas, até gosto do que faço, mas o chefe não me quer dizer, mas eu tenho a certeza de que a minha imagem o impede de me colocar ao atendimento. Imagem sim,embora tente, e tente bastante, não tenho e não consigo ter boa imagem. Uso frequentemente a barba por aparar, irrita-me barbear-me todos os dias. O cabelo nem curto e nem comprido, mas eu gosto! Já o chefe, eu tenho quase a certeza que não. Mas enfim, a sorte é que ele ainda me mantém a trabalhar no seu talho, é das poucas coisas que me correm bem.
Da parte velha da cidade onde é o talho até à minha casa a pé, devo demorar pouco mais que trinta minutos, mas caminho com calma, pois não tenho pressa em nada, ninguém me espera a não ser o meu cachorro de raça bull terrier, Bill, de seis meses. Pode parecer uma raça agressiva e perigosa mas este é imensamente doce e manso. Encontrei-o perdido e quase a morrer de fome e frio com um mês e pouco de idade, durante este mesmo percurso de trabalho - casa. Todos os dias lhe levo um pequeno osso. O Sr. Júlio Pablo sabe e autorizou, então o Bill agradece e adora!
Vou passar à loja pertencente ao bairro que esta junto à minha casa e vou comprar algo para o nosso jantar, - o meu e do Bill. A loja "la tienda" não é muito variada mas é perto e é o mais barato, o atendimento é que é péssimo, mas eu ignoro. O espaço em si não é grande, é tudo em madeira antiga, pouca claridade, com um balcão enorme a dividir o espaço pelo meio com uma enorme balança de dois pratos sob o mesmo. O cheiro mistura-se entre café que vendem acabado de moer e o cheiro de bacalhau corto, entre outros cheiros que não consigo identificar. Tudo parece típico do comercio tradicional. A senhora que está encostada ao balcão - pelo menos agora, pois costuma andar constantemente a atender, a arrumar e a limpar em movimentos rápidos e em passos coxos, pois possivelmente tem algum problema desconhecido por mim na perna ou no pé, não sei, nunca perguntei e nem quero saber. Posso parecer agressivo e insensível, mas ela é bastante feia. Usa um penteado que não consigo perceber se é moderno ou antiquado, parece preso com ganchos e ao mesmo tempo despenteado, pouco fala, e eu também só peço o que quero, pago e sigo. Desta vez vou levar uns ovos e umas salsichas. Pago, mas enquanto efectuo o pagamento olho para as latas de cerveja. Vou levar uma ou duas. Pego nas latas e coloco sobre o balcão. A senhora faz má cara, e eu digo que quero mais as duas cervezitas, - uso frequentemente os diminutivos, parece-me que arrasta alguma simpatia, mas acho que aqui não resulta.
Saio da velha loja, paro um passo à frente da porta e acendo um cigarro. Entretanto reparo que do outro lado da rua há alguém a olhar para mim, com o corpo não de frente, mas sim de lado. Parece-me uma mulher pelo volume de cabelo, ou será um género de ...gorro,...o casaco que parece vestir não me permite ter uma definição perfeita do seu perfil, mas parece-me ser de uma mulher com... Sei lá, uns cinquenta anos...,digo eu, é apenas um tipo de silhueta!. Subitamente, ouço uma pancada por detrás de mim. É a senhora da mercearia a fechar a porta da entrada, pois já estava na hora de fechar. São 8 horas da noite. Olho novamente para frente para ver a pessoa que me olhava mas havia desaparecido! Olho para os lados, para o passeio de uma ponta a outra. Tinha desaparecido mesmo! Mas pouco dei importância. Talvez não fosse para mim, suponho que estava a olhar para a velha loja. Vou para casa fazer o jantar e dar algumas alegrias ao Bill, pois tenho o ossozito que ele adora aqui comigo. Sigo os meus passos até casa, termino o cigarro à porta e entro. As cervejas estão frescas, apetece-me mesmo bebe-las. Reparo que na caixa do correio tenho alguns panfletos publicitários e folhetos de hipermercados e cenas assim, pouca importância dou mas levo comigo, pois servem perfeitamente para colocar junto às tigelas de água e comida do Bill. Assim que abro a porta , a recepção do Bill é fantástica! Salta com uma enorme alegria, parece-me querer dizer: «Olá amigo! Ainda bem que vieste, tenho fome!». Despejo o resto do saco que tenho guardado da ração na tigela do Bill, e claro ,dou-lhe o osso para roer. Enquanto preparo o jantar, que são as salsichas com os ovos, abro uma cerveja, que por sua vez está magnifica, fresca e agradável. Ligo a pequena aparelhagem onde ouço os meus CD's de musica country e céltica. Apetece-me ouvir céltica, é propicio à hora actual do dia. Ligo o fogão e dou por mim novamente a navegar nos pensamentos. Não sei porquê, mas aquela pessoa que me olhava do outro lado da rua veio ao meu pensamento. Eu não lhe havia enxergado a face e nem sei se olhava mesmo para mim. Recupero ao momento real e avanço para a preparação do jantar. Desfruto do som e janto com o Bill a meu lado, ao qual dou um pouco do meu jantar. Termino o jantar e a segunda cerveja e empurro o prato vazio um pouco para o centro da mesa e retiro da gaveta da mesa um pequeno embrulho prateado onde tenho um pouco de haxixe. Preciso de relaxar. Faço e enrolo um charro e fumo-o a olhar para a pequena janela que dá para um jardim escuro e de bastante arvoredo. Vou até junto do vidro, olho para o cercado que está do lado do jardim e deparo-me novamente com a pessoa que me olhou fixamente na rua, - ou então seria alguém bastante parecido com ela. Epa!!... Dá-se-me um pequeno arrepio. Não sou de grandes medos, apenas temo e tenho um enorme medo da morte, mas aquela pessoa assusta-me. Está ali parada e só podia estar a olhar para mim!!
De repente, o som da aparelhagem parou. Olho para a mesma e ao voltar a olhar para o cercado do arvoredo, já não existe lá ninguém. Bolas, que se passa aqui?! Penso, enquanto apago o charro num «esburraxar» imediato no cinzeiro. Volto a ligar a aparelhagem e jogo-me para a poltrona, onde o Bill vem ter comigo e salta para o meu colo, acomodando-se enquanto eu lhe faço algumas carícias. Quem será aquela pessoa? Olho para a porta de saída e confirmo se está trancada. O medo anda a pairar sobre mim e desta vez não é medo da morte. Será alguém que quer falar comigo? Não tenho ninguém com quem falar. Pois amigos não tenho. Apenas o Bill e o Sr. Júlio Pablo, que nem o considero como amigo, é apenas o meu chefe, o meu patrão, enfim, aquele que me paga!
Já tive dois relacionamentos, mas ambos correram mal. De certo que não é nenhuma delas, pois uma está em terras do norte de espanha, - ou pelo menos estava. A Guadalupe Rodriguez, e de certo que não iria querer vir ter comigo. A outra, a Eva Garcia, infelizmente faleceu vitima de cancro de mama. Uma curta batalha mas que foi mortal. Fiquei de rastos..., mas quero esquecer, preciso esquecer! Mas quem será que me anda a «controlar». E volto a pensar, porquê eu? Porquê a mim? Porque não nasci eu do outro lado do mundo? Só sei que tenho medo e desta vez não é medo da morte, é de alguém ou de algo que não sei ao certo o que é. Tenho medo! Preciso falar com alguém! Mas quem?!
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SOBREVIVÊNCIA NEGRA
Mystery / ThrillerJá alguém sentiu a sensação de que tudo corre mal, que todos o detestam e que algo de maléfico o persegue? Eu sinto e tenho provas. Tentar mudar? Eu tento...Mas corre sempre mal, porque o mal está comigo.