IGNORÂNCIA

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Dou por mim na poltrona, a aparelhagem desligou, são seis e trinta da manhã, adormeci aqui e dormi toda a noite, pois estava cansado e o charro contribuiu para o relaxo físico, eu só fumo de vez em vez, o hábito não é muito, mas até  gosto !!! Tenho de me despachar, pois tenho de me apresentar no talho às sete e trinta e o sr. Júlio Pablo não perdoa atrasos e não posso perder este emprego por nada deste mundo, enquanto dou o duche relembro-me da cena de ontem , queria falar ou contar isto a alguém, mas não vou dizer nada,  acho melhor ignorar, vão achar que sou louco, acho que alimentei um medo sem razões para isso, acho que exagerei um pouco ao assustar-me com algo tão banal que pode até não ser nada de mais.

-Bill,Bill !!!

O Bill onde anda? Que se passa? Estará doente em algum  canto da casa? Ah não, estava entretido a brincar na sesta da roupa, tenho de tentar lavar alguma desta roupa, isto já não é nada e ela também já não é muita, tenho pouca roupa que goste e me caia ao gosto!

-Anda Bill, toma! Pequena-almoço!

Dou-lhe um pouco de alguns restos que tenho, tenho de comprar ração. Tenho mesmo de ir, saio a correr com uma peça de fruta na mão a trincar de forma rápida. Ao abrir a porta da rua, parei...o olhar fixa-se logo de imediato para o local onde estava aquela pessoa ontem à noite, não vejo ninguém, respiro fundo, dou um sorriso e ignoro a situação, penteio -me  com os dedos e abano a cabeça de forma negativa e continuo a rir-me das minhas tolices. Vou directo ao meu carro, como tenho pressa , hoje vou levar o meu velhinho carocha , gosto muito dele, é velho sim, mas, ...já passei muito com ele!! Momentos bons e maus! Apesar de estofos já gastos e descosidos em algumas partes, aquelas peças que se partem, desencaixam, desmontam,...enfim a palavra certa para ele é velho, mas de motor está impecável, pelo menos até à hora. Reparo num pequeno panfleto que está preso numa as escovas do pára-brisas, retiro-o sem interesse, e é óbvio que passo um rápido olhar pelo que está escrito no panfleto, é uma  propaganda daquelas de pai-de-santo ou curandeiro ou lá o que é, um tal de Dr. Luttyba, morada e numero de contacto telefónico só olho e vejo por mero acaso que termina em 666, enrolo o pequeno panfleto numa só mão e jogo para debaixo do meu carro. Monto-me no carro e sigo  para o talho, consigo chegar a horas, fantástico, o que eu não quero é ter problemas com o sr. Júlio Pablo, pois preciso muito deste emprego, se o perco como pago a renda do meu pequeno apartamento ?... como compro comida para o Bill?..Como compro tabaco?...Como bebo as minhas frescas?...Tenho de o manter, sem dúvida. Entro no local de trabalho e ao passar pelo sr. Júlio cumprimento-o:

-Sr. Júlio, bom dia, está bonzinho?!   

Mais uma vez, é mesmo sem intenção, a usar o diminutivo, epá, não sei, mas acho que arrasta simpatia , sei lá, são coisas minhas...tolices talvez. É com grande naturalidade que ele me responde com maior agrado e simpatia. O sr. Júlio  no fundo não é má  pessoa, enfim, é patrão, tem de manter a sua postura. Um homem alto, cabelo já meio esbranquiçado , todo lambido para trás, diria até,...um pouco deselegante.Enfim...é boa pessoa. A manhã relativo ao serviço corre com normalidade, já à  hora de almoço, por norma almoço no refeitório do talho, mas como não tenho almoço  hoje comigo vou ter de sair e ir ao bar aqui próximo. 

É hora de almoço...vou ao dito local, entro no bar, já há algum tempo que não venho aqui, não é casa de grandes multidões, a esta hora há pouca gente pois  funciona melhor à noite. Reparo que o barman já não é o mesmo, um tipo de fato aparentemente caro ou pelo menos parece, mas enrugado ou encarquilhado, acho que dormiu pior que eu, e com a cara que mostra carrancuda, já bebeu bastante, está debruçado sob o balcão numa posição de pouca firmeza, olha e faz-me uma leitura visual de cima a baixo, mas estou-me nas tintas, quero lá saber do tipo, numa mesa quase ao canto do bar está um velhote de chapéu cómico, cómico digo eu porque parece chapéu tipo de marinheiro, tipo popeye, de cigarro ao canto da boca a segurar com as duas mãos  um cálice, acho que é uma espécie de brandy, pouco levanta o olhar num movimento tardio, apenas conheço de vista um que está sentado  num banco alto ao final do balcão, um tipo gordo, de péssima apresentação de nómada, diria até bem pior que eu , camisa fora das calças, barba por aparar de um ou dois dias, salta à vista o suor a correr-lhe ao lateral da face, a beber imperial e a ver um jogo de futebol sei lá de onde na TV,talvez nem ele saiba que clubes são... tento entender que jogo será, futebol a esta hora? Até gosto de futebol, mas este não sei de quem se trata, é um jogo qualquer de um outro pais só pode , nem conheço, quero lá saber! Chego ao balcão, peço uma sande mista e uma cerveja, enquanto o barman prepara o meu pedido, vejo que alguém está a sair do WC , um rapaz, um rapaz novo de raça negra, rastas, de rosto sinistro, apavorante, parece ter cicatrizes, não consigo ver bem, tento disfarçar mas ele olha para mim enquanto se encaminha para a saída do bar,aqueles passos ao cruzar-se por mim parece terem abrandado, o movimento parece ter passado para um slow motion de um filme, tem um pequeno colar como o meu que tem um acanhado chifre, dizem ser  bom para evitar maus olhados, disse-me a Eva quando me o ofereceu, sempre acreditei e adorei as histórias de bruxaria, feitiçaria, e histórias do além, por isso usa-lo. Mas no momento em que ele passa por mim, apesar de eu não ligar muito ao facto , vejo que ele tem uma T-shirt  negra com o numero 666 em grande e em branco, o tipo saiu do bar, não percebi porque olhava ele tanto para mim , mas não ligo a tal, como é natural em mim, estou-me nas tintas. Mas porra...agora anda tudo a olhar pra mim?! Deixa lá...! Almoço , pois não sou de demorar muito nas refeições, depressa pago e saiu do bar, o ar aqui é pesado, ao encaminhar-me para a saída, passo junto ao tal velhote do chapéu cómico, ele levanta ligeiramente a cabeça e olha para mim ,pisca o olho em sincronia de um pequeno sorriso!! eh,este tipo está bêbado!!

 Já no lado de fora do bar, alastro o meu olhar pela rua a fora, uma rua movimentada, imensa gente, uns em passeio, às compras, outros atarefados! A tarde está um pouco fria, estamos no inicio de Setembro, não era suposto estar esta temperatura, existe uma pequena brisa irregular. Sigo para o talho pois a hora de almoço é curta.

São 19 horas, sigo rumo a casa, preciso de um duche, enquanto me encaminho no transito, numa paragem de um semáforo num escasso olhar para o lado reparo numa placa de um anuncio qualquer  em que consta o numero 666 !! Automaticamente me dá um flash do panfleto que estava no pára brisas do meu carro do tal Pai de santo, curandeiro ou lá o que era com o numero 666,...da T-shirt  do tipo de raça negra , de rastas, de rosto sinistro que também tinha o numero 666 em letras grandes  e brancas , agora esta placa com o numero 666...isto é mero acaso ou será algo diferente...um sinal, será? Sou despertado deste assustador transe por uma buzinadela do carro que está atrás de mim, o sinal já abriu, passou a verde. Sigo para casa , a  rever constantemente o numero e os factos,   enquanto estaciono o carro e saio do mesmo continuo a pensar no numero 666, não consigo associar a nada, nem fui grande aluno nos estudos, não sei se será algum numero que tenha a ver com algo de historia, algo relevante ou coisa parecida. Não sei em que pensar, se pense , ou não pense! Mas isto é normal em mim, pois eu penso imenso! Vou dar o meu duche, comer algo e porque não beber algo forte hoje, pois nunca se sabe o dia de amanhã, vou ignorar esta história do 666, acredito que seja uma mera tolice , não me posso concentrar em tudo e todos, eu até nem me preocupo com nada, sempre fui assim, vivo o meu mundo e não me importo com o que me rodeia, mas isto é estranho e invulgar, mas...sei lá,...666 o que será?! embora  um pouco perturbado e um quanto ou tanto alarmado com esta mística casualidade eu vou ignorar, simplesmente ignorar!








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