Ela abriu os olhos sem saber se despertava. Porque não tinha a sensação de que estivera dormindo. Não estava com aquela moleza com preguiça, nem a vontade de bocejar que temos ao acordarmos. Sua visão estava desabituada e via em cores estranhas, embaçado, distorcido. Teve que piscar várias vezes até enxergar normalmente, ou considerar que o jeito que enxergava era normal. Nesse tempo relembrou que seu nome era Lis, e teve uma sensação que tudo aquilo era novo, ou pelo menos, diferente de todo o ambiente que costumava lhe cercar outrora. A única certeza que tinha era que havia passado muito tempo entre o momento que fechara os olhos e este. Muito tempo dormindo. Quanto? Olhou em volta já com o formigamento da ponta dos dedos dissipando e a percepção de todo seu corpo se integrando à sua consciência.
Viu uma mesa metálica bem na frente de seu ventre, e que suas mãos estavam sobre ela. Retirou-as assustada, mas sem demonstrar pânico. Porque várias pessoas sentavam no mesmo banco com ela, e várias outras sentavam às muitas outras mesas num amplo salão. Ou melhor, isto era um galpão. De teto muito alto. Incontáveis mesas, multidão. Mas tudo em ordem, em sincronia, como se todos fossem peças de um gigantesco relógio, cujos ponteiros estivessem lá fora. "Devem ser militares", pensou Lis. Olhou para o próprio banco, percebeu-se sentada e o tocou. "O que estou fazendo aqui?" A sensação de confusão lhe aumentava a angústia, além do pavor em pensar no que faria se perdesse o controle. Olhou para as pessoas ao seu lado, procurando um rosto confiável (porque algo lhe dava a certeza que não encontraria ninguém conhecido ali). Mais duas moças à esquerda, sentado à cabeceira da mesa, um senhor de meia idade. Não soube por quê, mas ao ver sua face resoluta, sua postura firme, ficou um pouco mais calma. Seus cabelos e barba bem aparados tinham um tom grisalho. Deveria ser alguma espécie de professor, ou supervisor. Pois, salvo ele, todos na mesa eram, como ela, jovens moças.
Todos à sua mesa comiam à vontade, e o cheiro delicioso das mais variadas comidas invadiu seu paladar como uma nuvem densa e viscosa. Percebeu que estava com muita fome e que a comida lhe era irresistível. Eram cortes de carne e cortes de legumes, e cereais misturados, moídos, em pastas e purês, em molhos exóticos e tudo era extremamente aromático! Mas não reconheceu nenhuma carne, ou nenhum bicho a que aquelas carnes pertencessem, muito menos quais partes. Ainda se perguntando como era possível despertar do nada ali, a uma mesa de almoço (parecia ser hora de almoço), rodeada de pessoas que nunca viu e sem fazer menor ideia de onde é, nem o que estão fazendo ali.
– Coma! – falou aquele homem, mandando. – Pode comer – incentivou, mais suavemente.
O pior, mais estranho, foi procurar na memória quem ela mesma era e nada encontrar! Não lembrou de seus pais, mas tinha a sensação de ter tido pais. Nem tinha lembrança dos irmãos, apesar da sensação saudosa de que fizera parte de uma família assim: que em algum momento do passado remoto tivesse feito uma viagem sentada ao lado de irmãos e irmãs, com sua mãe no banco da frente e seu pai dirigindo uma perua. Mas não havia nomes, nem rostos, nem datas, nem lugares. Nada senão a sensação de que isso havia existido, há muito tempo. "Quanto?". E a comida era muito saborosa.
Quando seu garfo bateu no aço do prato, deu-se conta do grande barulho que fazia no galpão. Das pessoas falando, dando ordens, conversando. E das turbulentas naves, imensas, que passavam pelas enormes janelas de toda volta do galpão. Perguntou-se, olhando tudo isso, se era a única assim, tão desencontrada. Mas as naves chamaram sua atenção completamente. Continuou a mastigar. Levantou-se para enxergar melhor. O homem da mesa olhou para ela, atento à sua ação. Lis percebeu que ele lhe vigiava mas não se importou.
– Pode ir até lá – falou o homem grisalho, com sua voz firme. – Olhe e volte logo.
As moças ao seu lado olharam para ela um tanto intrigadas, mas principalmente com censura. Lis caminhou devagar, sentindo as juntas dobrarem com vigor e sua carne firme. Algumas pessoas pelo caminho lhe lançaram olhares recriminatórios, mas a maioria delas lhe ignorou. Junto à janela, viu que era tão grande que uma nave daquelas poderia entrar se a janela fosse aberta. Mas havia um vidro ali. Ela tocou. Estava quente. "Não deve ser vidro" pensou Lis. "E que naves são essas?" Pareciam planar e ser capazes de se dirigir a qualquer direção. Seu aspecto era de ser uma nave de um futuro surreal, muito distante. Mas estava ali, fazendo barulho, jorrando jatos de ar, umas pousando e desembarcando, outras levantando voo e partindo em alta velocidade até perder de vista. Lis viu que pilotos e... ("o que são eles? Combatentes?" perguntou-se Lis) combatentes entravam e saíam das naves. O hangar estava lotado de pessoas. Lis sentiu um toque no seu ombro.
– O Prospector mandou você voltar – falou-lhe uma moça morena que estava na mesma mesa que a sua.
Lis não tinha opção. Iria para onde? Iria perguntar a quem? O homem grisalho devia ser esse tal Prospector. "Nome estranho... deve ser um posto, ou uma patente..." pensou. Ela seguiu a moça grata por ela ter ido chamá-la, porque não encontraria o caminho de volta da janela até a mesa, de tão uniforme que eram elas, as pessoas, os trajes e de tão espaçoso o galpão. Quis falar com ela, mas a moça morena caminhou à sua frente rápido e direto para a mesa. E Lis estava completamente absorvida com a aparência daquelas naves. "Ou são do futuro ou são de outro planeta" Lis definiu. Mal sabia que ali era o futuro, tão futuro que seu mundo já não existia, que seu mundo já se tornara outro planeta.
Quando chegou à mesa, os olhares incomodados das outras moças caíram sobre ela. O Prospector observava todos os detalhes atentamente, mas sutil. Quando terminaram de comer, o Prospector levantou-se e todas se levantaram e seguiram ele. Lis foi junto.
Pareciam caminhar como um grupamento, através dos corredores de um edifício de concreto e metal, mas muito moderno, lustroso, iluminado, espaçoso. Apesar disso, não parecia ser feito para pessoas. Parecia ser para robôs, ou para alienígenas. Lis estava tonta com tantas especulações na cabeça, e seu pescoço já doía de tanto virar para um lado e para o outro. Foi quando abaixou a cabeça para os próprios pés e se viu calçada com um calçado igualmente estranho. Aparentava ser de metal, o mesmo metal reluzente e de aspecto resistente que estava por toda a parte. Mas envolvia seu pé com maciez e sua pisada era estável. O desenho era uma mistura de bota com sapato, de tênis com foguete, de roupa com arma. E viu sua calça perfeitamente ajustada, que quase não sentia estar vestida, de cor variável com a iluminação. Sua camisa era branca lisa, também bem ajustada, mas nada reveladora, e as mangas iam até a metade do antebraço. Sobre seu peito esquerdo havia um pequeno escudo laminado, de cores escuras, sóbrio, elegante, mas não pode estudá-lo mais porque enfim chegaram defronte à porta. Parecia de vidro, como as janelas, mas não se enxergava o que acontecia por trás dela. As moças foram entrando através do vidro como se fosse um véu de água, com naturalidade. Lis ficou espantada com aquele material. Começou a ter medo de que fosse "descoberta". Estava imaginando que deveria ser uma moça como aquelas, que sabiam exatamente o que faziam ali, o que estava acontecendo neste mundo, mas não era. Perguntou-se se estava tendo alguma espécie de alucinação, de delírio. "E se eu não passar?" angustiou-se com essa dúvida. Ficou nervosa, começou a tremer, à medida que as moças a sua frente passavam para dentro e se aproximava sua vez. Então chegou o inevitável: e atravessou. Que alívio.
Era, de modo geral, uma sala de aula. O teto era oval, as paredes ovais, onde projeções holográficas apareciam luminosas, com esquemas, gráficos, números, e desenhos ininteligíveis. A tecnologia era muito além do que sua imaginação poderia prever para o futuro. Uma professora metódica conduziu um treinamento eficiente. O Prospector sentou-se aos fundos por uma ou duas horas e depois saiu. Lis compreendeu tudo da aula. Mas ao final ficou ainda mais perdida. Não lhe fizeram indagações sobre seu estado emocional, nem perguntaram sua opinião sobre os assuntos. Pelo que foi ensinado, ela compreendeu que queriam que ela fosse uma guerreira, um soldado, uma lutadora. Não lhe apresentaram qual era a causa, nem quem era o inimigo.
Quando terminaram as aulas-treinamento, já era noite. Lis estava exausta e queria apenas dormir. Retornaram ao galpão para jantar. Sua mente estava tão cheia de perguntas, informações, técnicas de combate, etc, e sentia seu estômago tão ávido por ser preenchido que terminou agindo como todos aqueles "soldados?", comendo mecanicamente.
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Contos d'Outros Mundos
Short StoryPoderia ter sido, mas não foi. Seria, mas não é. Acontecerá, talvez. Parece com aqui, mas deve ser de lá.