O menino tomava sua caneca de café com leite em pó. Pegou seu pão grosso com queijo e fez mais força do que pensava precisar para arrancar uma mordida.
– Duro não é? Ra ra ra – riu seu pai, vendo as notícias no seu telemóvel inteligente.
O garoto também sentia dores de alguns dentes moles e outros rasgando a gengiva.
– Morda com força – completou sua mãe, enquanto lavava os pratos. – Dra. Rute disse que você tem que morder coisas duras para os dentes descerem!
– Afe, mãe – falou envergonhado pela suas mudanças, com a boca quase cheia de um pedaço maior que esperava – a senhora já disse quinhentas milhões de vezes!
– Mastigue de boca fechada – falou seu pai.
O menino estava de férias, mas pouco podia fazer para se divertir, durante essa guerra. Na verdade, nem era o mês das férias. A escola fora fechada por ordem do Governo-de-Guerra. Ele não entendia por quê.
– Posso sair, mãe?
Ela apanhava alguma coisa suja do chão enquanto pensava.
– O que sua irmã está fazendo?
– Montando blocos.
– Está bem. Pode ir. Mas só ande na rua se Lucas ou Saulo forem com você.
– Está bem. Tchau, mãe.
– Cuidado!
E saiu. Nas ruas carros blindados e camuflados circulavam entre os automáticos com pintura perolada. Pessoas caminhavam atarefadas com pressa, entre soldados e oficiais. Quase todos, quando passavam por ele davam-lhe um sorriso. Ele gostava dos sorrisos, mas não gostava de se sentir inseguro quanto a sua infantilidade. "Andam o tempo todo de cara amarrada, não sorriem para os outros, só para crianças. Deve ser engraçado ser crianças para eles".
– Que chato Saulo não poder vir – disse Lucas.
– O pai dele está na Guerra, sabia?
– Sabia. Papai me disse. O seu pai não vai para guerra?
– Meu pai disse que todos nós estamos na guerra. Ele ajuda a construir as armas e os carros. Já lhe disse que ele é engenheiro.
– Já... Mas MEU pai é tenente. Ele pega em fuzis, pistolas... Pilota tanques!
– Seu pai atira com os fuzis que MEU pai fabricou.
Eles chegaram a esse impasse: sentiam-se competindo num tipo estranho de orgulho infantil, ao mesmo tempo como se fossem companheiros de farda na guerra.
Um carro de som virava a esquina enquanto eles caminhavam para lugar nenhum:
"Cada cidadão é fundamental para a vitória da nação!"
"Nossos heróis combatem bravamente os inimigos da pátria."
"Querem destruir nossos valores, nosso estilo de vida, nossa moral, nossos costumes."
"O exército coronulano invadiu a cidade de Araçá-Roxo sem piedade aos seus habitantes. Destruiu escolas, hospitais e centros de compras. Por isso, permaneçam em casa! Nossas forças armadas cuidam de nós!"
"E continuava a propaganda rua abaixo."
– Eu queria ir para a guerra – falou o menino.
– Eu também! Queria que todos esses coronulanos morressem. Todos!
– Queria explodir cabeça deles!
– Que nem as cabeças dos sapos atropelados.
E deram boas risadas juntos.
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Contos d'Outros Mundos
Short StoryPoderia ter sido, mas não foi. Seria, mas não é. Acontecerá, talvez. Parece com aqui, mas deve ser de lá.