Os últimos espinhos

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Restaram as plantas. Mas não muitas. E mesmo essas, quando morrerem, quem sabe quais hão de substituir? O mundo todo queria a paz. Eu acho que sim... pelo menos como a conclusão de seus planos. É difícil pensar que alguém ativamente deseje a guerra e a destruição sem sentido e sem propósito, sendo simplesmente pelo deleite na devastação. Outros queriam também a preservação da natureza, os direitos humanos, o direito dos animais, etc. etc. Fato é que agora não há nenhum ser vivo senão as plantas. Digo isso não como metáfora ou figura de linguagem. Sei que você lê isso como a uma ficção científica, uma distopia. Eu queria explicar como consegui enviar para você o relato desta cena, mas seria enfadonho e você deixaria de ler abusado de um texto tão científico e complexo. Para mim, pouco importa se você considera isso uma ficção ou fatos reais de um futuro distante... aliás, a sensatez que espero de leitores me faz preferir que tão somente tomem esse texto como uma distopia de um escritor qualquer e contemporâneo. Fiquemos bem assim. Já deu. Fato para mim, estória para você. Quero apenas que veja por estas letras uma única cena. E contemple o que ela significa e olhe o que há no seu presente que poderia levar a esta cena futura. Para mim, é mais que o suficiente e todo o esforço valeu a pena. Tanto faz eu concordar ou discordar com meus colegas físicos de que não é possível alterar o presente por meio de informar o passado, visto que a própria informação enviada para trás do tempo deixaria de existir, etc. Gente já se atracou nos congressos por causa disso. O que importa é que só me restou isso para fazer, então faço. Na cena que relato eu nem estou vivo, já morri. Repito, de ser vivo biológico, só restaram as plantas. E mesmo essas, são as últimas. Não sei se há alguma em algum lugar do mundo que ainda produz sementes. Mas tenho quase certeza que se produz, é estéril. Mas isso digo com certeza: nem o bolor resistiu à radiação das bombas dessa guerra. Só restaram as plantas, e poucas espécies espinhosas, secas, quase mortas. Acho que prestes a morrer, sem vírus, sem bactérias, sem mitose. Mais fácil assim, se você sabe o que é mitose celular. Há uma radiação em todo o mundo que bagunça o fuso mitótico, os arranjos de DNA, de RNA, etc. O que resta são plantas que permanecem como os fios de cabelo de um cadáver, que continuam a crescer por algum tempo mesmo dentro do caixão.

Vou relatar uma única cena. E espero que isso baste... quer dizer, espero nada. Mas ainda assim vou descrever essa cena. Apenas isso. Não é uma história, é a descrição de uma cena, em que ainda há poucas plantas, e depois que essas morrerem, mais nada.

Há os robôs. Há as máquinas. No final, a guerra se restringiu a dois lados inimigos, e produziram máquinas para destruir e vencer a guerra. No final, viram que iriam todos morrer, e deram um jeito de as suas próprias máquinas se reproduzirem. Isso mesmo: desde a mineração para a matéria prima, até a instalação da inteligência artificial no dispositivo de armazenamento de memória. Todo o processo de produção de uma máquina nova foi incorporado à inteligência artificial de máquinas com membros e instrumentos de captação de matéria prima, fabricação e montagem das peças, até o produto final, sem que um ser humano precisasse apertar um botão.

Então a cena é esta:

Um campo num planalto. O sol é da tarde, já caindo. Há nuvens, mas não de vapor d'água. O terreno seco, aquela terra batida, seca, que o vento passa e faz poeira. Pedras naturais, pedras de concreto explodido por todo lado, amontoadas e espalhadas a esmo. Entre elas, sobrevivendo de alguma possível umidade sob elas, ocasionalmente, sobe uma planta fina, de verde que desistiu e cansou de lutar por ser verde, e passou para um marrom doente e cinzento. Emite espinhos. Espinhos do fino caule. Folhas também, de contar nos dedos. Mas mais espinhos que folhas. Espinhos inúteis. Porque já não há ali nada vivo para se espetar. Dali a diante, não há nada para contar. Não há ninguém que venha a saber, nem avisar. Não faz sentido fazer registro por fotografia, por som ou por imagem, senão para enviar ao passado. O que é impossível, não é? Mas se fosse impossível, como lhes chegou essa cena? Como um escritor pode descrever uma cena que é impossível de ter sido registrada num universo que só há transmissão de informação para o futuro? A-há! Então, creio que lhe conquistei o carisma de olhar para essa cena com pelo menos a nuance de uma possibilidade.

A inteligência artificial das máquinas de ambos os lados já chegou a essa conclusão: que não há futuro. E são incapazes de discutir o passado.

E, por causa da exatidão de cálculo, provavelmente já incorporou ao programa a auto-destruição, ou a interrupção da reprodução quando eliminar o último robô inimigo. Eis que mesmo numa inteligência artificial há o cálculo do desespero. Ou seria tal resultado de cálculos inevitável porque para uma máquina há impossibilidade de processos de esperança? Como podem imaginar, nem mesmo esses processos exatos dessas máquinas dão todos corretos.

Falei robôs e máquinas porque restaram dois. E meu uso do plural aqui é por causa da quantidade mínima do plural: dois. É porque todas as máquinas se autodestruíram, porque nos seus sensores, deixaram de captar sinais das máquinas inimigas. Então um a um se explodiram. É engraçado, porque isso aconteceu ou por processamento de dados errado ou por estratégia de um dos lados. Veja: nesse campo que chamo você a olhar, há duas máquinas. Uma delas, bem discreta, camuflada entre os escombros. Quase desligada. Parece que todos os robôs de sua facção planejaram se autodestruir e deixar apenas uma em estado inativo e latente. Quase desligada. Tal que os robôs do lado inimigo perceberam isto em seus sensores e deram a guerra por vencida e começaram a se explodir. Quando restou somente um, esse processou errado a informação para a autodestruição e não conseguiu se autodestruir em sincronia. Foi nesse momento, que talvez por coincidência, a máquina restante do lado adversário não processou a informação que restou um robô que não se autodestruiu e por isso, acionou-se (para somente verificar a extinção das máquinas inimigas e então se autodestruir também). E por ter se acionado, a máquina que não conseguiu se autodestruir imediatamente captou o sinal. Pronto, são essas as duas máquinas. Não me pergunte o porquê, mas o robô teve que tomar uma decisão: ou fabricar mais robôs para ir em busca dessa última máquina inimiga, ou partir imediatamente, enquanto ainda tem o sinal, e antes que essa mesma máquina inimiga inicie também a fabricação de mais máquinas para a sua facção. E a decisão daquela que calculou que era a única no mundo seria: ou se autodesligar completamente, ou fugir, ou fabricar mais máquinas aliadas. Já essa, suponho, decidiu se autodesligar por ter sido este o plano original de sua facção.

E como terminou a cena? Depois de milênios, as peças de ambas as máquinas se oxidaram e travaram. Seus circuitos se esgotaram. Era que quando o robô perseguidor se movia, o outro se desligava. Quando o robô perseguidor se afastava, o camuflado se acionava para verificar seu fim, o que tornava a atrair o perseguidor. E foi assim, perseguindo e desligando, e se afastando e religando, consumindo os elétrons dos circuitos, os magnetos das articulações, as placas eletrovoltaicas, etc. Até que uma não conseguiu sair do lugar, e a outra não conseguiu se religar. Os espinhos já não existem. Muitas daquelas pedras viraram pó. E o que me resta, nem é nada de mim mesmo. Nem essa memória é nada real, sem que seja possível chegar com ela ao passado. Nem sei se é possível, nem me importa. Que importa qualquer coisa a um morto? Resta e importa apenas você que a lê.    

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