Revoltado, voava lá no alto, no cume da troposfera, com suas asas negras abertas sob o sol. Planava de bico erguido, tentando afastar-se da limpeza da cidade abaixo. Foi voando mais e mais alto, em busca do último odor fétido. Buscando correntes que o elevasse até a altitude que trouxesse paz a sua consciência quanto a estar longe o suficiente dos ares limpos da cidade. Até uma altura que já não havia urubu algum. Estava só, mas estava em sintonia com seus anseios.
A ave era um urubu. E é claro que não tinha raciocínio refinado, nem formava estas palavras como nós, humanos. Mas tem sentimentos. Nós que damos palavras aos sentimentos e assim os pervertemos. Ainda que o urubu não tivesse o conhecimento de si como nós temos, nem das consequências de seus atos e pensamentos, o urubu tinha sentimentos, sim. E aqueles eram os sentimentos deste urubu. Posso relatar com segurança por causa do eletropsicógrafo espectral (EPSIGE) utilizado nele post mortem. Talvez em vossa época ainda não haja este aparelho. Foi desenvolvido por Voltaire Sigmund, um físico e psicólogo cisplatino, quando buscava um método de monitorar e interpretar os sentimentos confusos dos seus pacientes. Eletrodos são introduzidos da fase aural do encéfalo, nos núcleos amigdalóides e no hipocampo, principalmente. São transcritas ondas, interpretadas por um computador, que fornece tabulações de quocientes de entropia sentimental. Enfim, não vou me prolongar explicando o método para uma geração a tanto tempo no passado. Basta eu dizer que o método possui uma sensibilidade de 98% e especificidade de 97%. Ou seja: funciona. Pode confiar. Pegamos o que sobrou do cadáver do urubu e enfiamos eletrodos do EPSIGE no cérebro dele, e esta história é baseada em grande parte na interpretação cuidadosa da entropia sentimental.
Estudos genéticos comprovam que os urubus de Antuérpia vieram de uma ninhada só, de imigrantes brasileiros do século XXI que a contrabandearam para a Europa, o antigo Euroslã. A espécie evoluiu bastante. Hoje, são aves brancas, austeras, de vôo silencioso. Sua cabeça é depenada e rugosa. Sua envergadura chega a 1,3 metros. Fazem ninhos meio a arbustos nas praças, perto da presença humana, nunca a mais de meio metro de altura. Os genitores são hermafroditas que se revezam na incubação durante cerca de 40 dias. Os filhotes eclodem com plumagem negra e são alimentados por restos de alimentos dos transeuntes. À medida que crescem, sua plumagem clareia até o branco neve. O primeiro vôo acontece por volta dos dois anos de vida, quando já são adultos e por vezes já puseram ovos. O urubu alimenta-se de carne limpa e frutas frescas. Esta preferência de dieta provavelmente é acidental, visto que seu sistema digestivo é muito eficaz, tal que resiste a conteúdo altamente contaminado e seu suco gástrico é capaz de digerir nervos e ossos.
Este urubu em questão deve ter tido uma série de mutações genéticas que fizeram permanecer com a plumagem negra. Durante seu amadurecimento no ninho deve ter sido marginalizado pela diferença de cor dos seus irmãos e genitores, a tal extremo que começou a voar com três meses. Como era enxotado pelos humanos, por estranharem sua cor diferente, provavelmente não o reconheciam como o dócil urubu, não alimentava-se da mesma dieta salutar costumeira da sua espécie. Assim, ele teve que procurar alimentos noutro nicho.
Nosso urubu passou a se alimentar de restos de alimentos, frutas e carnes em decomposição. Mas como já dito, seu organismo era capaz de digerir esta dieta diversa. E o fez tão bem que seu porte era quase o dobro dos urubus da cidade, antes mesmo de atingir a idade adulta. Ficou forte! Seu vôo era mais alto e o tempo que resistia a planar, muito mais longo. Mas era uma ave adolescente solitária. Quando chegou a fase reprodutiva, também houve comportamento muito estranho a sua espécie. Provavelmente as toxinas não bem depuradas se converteram em ferormônios que alteraram seu comportamento sexual.
Ele a princípio raptava jovens adultos dos ninhos para o chão e lá copulava diante de todos, como se ele fosse o macho sobre a fêmea. Este comportamento compulsivo foi tomado como agressivo e os urubus mais velhos, já voadores, o afastavam. É possível que isto tenha atuado como fator de estímulo visual sobre os jovens urubus dos ninhos na cidade, porque naquela época houve episódios em que alguns jovens urubus desciam de seus ninhos de modo voluntário ao verem nosso urubu, para copularem com ele feito fêmeas. E foi um período que muitos urubus saíram dos ninhos mais precocemente. Porém, depois de vários episódios de cópula compulsiva seguidos de conflito interespécie, autoridades civis passaram a proteger as aves desses conflitos.
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Contos d'Outros Mundos
Short StoryPoderia ter sido, mas não foi. Seria, mas não é. Acontecerá, talvez. Parece com aqui, mas deve ser de lá.