A professora caminhava confiante enquanto falava, em seu vestido estampado, alta, seus cachos insinuantes brilhosos balançando em sincronia com suas mamas frouxas médias, com um sorriso vulgar (não vulgar para o cotidiano, mas sim para uma aula de literatura), num conjunto de odores de flores e volúpia, de livros sensuais de alfarrábio. Acho que essa era sua intenção, seu uniforme para aquela aula matutina. O que falou foi o seguinte:
- A taça do desejo, o que é? O que tem dentro? Se tomar, o que acontece?
A turma escutava com desinteresse. Mais reparavam na estampa, ou nos movimentos pendulares do que lhe estava solto, ou no cheiro que se abanava dos cachos de caracois, ou nas angulações dos dentes de seu sorriso fixo.
Os que ouviam estavam com sono, irresolutos em dar resposta ou de qual seria. Hesitantes.
Onésimo não titubeou; sua demora em falar foi pelo cansaço que o tema lhe suscitava. Não respostou, falou como se assumisse a aula. Foi irredutível asserção.
- É a taça da ilusão.
Chiados de desaprovação percorreram. Críticas em murmúrio. A professora fraquejou em manter o sorriso, sustentando com esforço um resquício dele com a força de seu orgulho, mas a esse restou apenas traços de um sorriso irônico. Fez um risinho como que querendo retomar controle sobre o assunto e replicou:
- É mesmo? Certo... Então, o que acontece? Elabore.
- Se a senhora permitir - falou prontamente -, Precisarei ilustrar com uma história não tão breve quanto a circunstância o requer...
Onésimo falava desse jeito mesmo, meio formal, meio excêntrico, destoando dos outros mortais. Por essa característica, uns lhe apelidavam de "Filósofo", com sarcasmo desdenhoso, claro; outros só evitavam estar nas cercanias dele, o tomando por perigoso ou um desajustado. Nisso incluo os professores. Um ou dois deles o compreendiam, e se referiam a ele por "Estudante", e aos demais por "Alunos". Onésimo entendia a sutileza, e mais nenhum.
"Diga, aluno!" dizia o professor em atenção a uma mão levantada. Mas quando Onésimo parecia estar confuso, "Fala, Estudante!". Essa professora era dos que o tomavam por perigoso. Ali ela ficou temerosa, mas para não demonstrar, e mesmo numa expectativa de derrotar ele, e de o deixar constrangido em vergonha, caiu no desafio:
- Vamos, prossiga.
"Surgiu na cidade, como que do nada, um homem um tanto eloquente, com uma mensagem religiosa, filosófica, que envolvia mistérios quânticos e o sentido da existência transcedental."
Onésimo falou sentado mesmo, apenas com voz volumosa suficiente para até o mais distante da sala o ouvir sem dificuldade.
"Não se apresentava assim, mas fez os outros falarem de si que ele era Dom João Miguel, Arquiduque dos Campos Elísios, Príncipe de Caevanrás.
Com alguns meses já tinha centenas de adeptos, e suas pregações eram chamativas e fervorosas. Ensinava a eles seus cultos, seus rituais, mantras, sinais, senhas, envolvido em um ar de sagrado, de mistério, de bênção. Eram informações maravilhosas, e quem recebia tais conceitos se sentia separado do mundo, num êxtase de quem pertence a um grupo eleito de super-humanos. Os adeptos saíam dos cultos com semblante reluzente e sedentos por mais de seus mistérios revelados pela luz de Caevanrás.
Certa vez um cético lhe visitou na sala mais baixa do templo e lhe perguntou:
- Quem lhe deu esses títulos: "arquiduque", "príncipe"?
- Os Deuses de Caevanrás - respondeu Dom João Miguel, com a convicção mais natural da pura honestidade.
Seus seguidores ao ouvirem tal resposta saindo de sua boca sentiram a alma ser lavada pelo bálsamo do prêmio eterno da fidelidade. Pois em seus proselitismos era assim que respondiam, mas claro, com réstias de hesitação.
- Vou-lhe dizer o que me parece - falou o cético um tanto trêmulo de nervoso pelo embate de ideias em meio aos discípulos dele, - que estes são títulos que vossa mercê deu a si.
Os seguidores ficaram extremamente ofendidos. Ultrajados por ter aquele descrente ignorante dos mistérios de Caevanrás zombado da fé deles. Falavam entre si: "Como este mundano ousa questionar Dom João Miguel?", "Absurdo! Afrontar um homem santo como este... é porque não o conhece. Não há vivalma mais honesta que o príncipe." Uns cerraram os punhos, com ira real, pensando: "Este não nos teme? Vou-lhe quebrar a cara. Deixa eu me deparar a sós com ele." ou "Quem é esse iníquo para falar assim? Sabe nada do Caminho, esse indigno."
Era por isso que o cético estava tenso. Muitos outros céticos fugiam do embate por essa animosidade que facilmente se expressava por um simples principiar de expor o íntimo pensamento de quem duvidasse. Os céticos podiam viver suas vidas sem ouvir ameaças, sem ter quem lhes odiassem. A fúria do zelo dos seguidores se espalhava feito névoa densa. Os céticos preferiam o silêncio ao enfrentamento. Viviam a vida e deixavam viver suas vidas quem quisesse acreditar que aquele estranho forasteiro fosse um príncipe de sei-lá-onde. Até que muitos céticos, por não ouvirem a voz questionadora de outros céticos, passaram a ser crentes. Pois, "como pode tantos acreditarem nisso, se fosse falso? E se fosse falso, haveria quem os expuzesse."
Dom João Miguel percebeu a hostilidade dos seus adeptos e falou pacificador:
- Meus amigos, tenhamos fé e bondade. Se a verdade está do nosso lado, não há o que temer. Os que não tem a verdade temem e tremem. Se a verdade não está com alguém, então deve ser desmascarado. Aqui temos a Verdade. Conhecemos o Caminho. Temos o dever de ter paciência com todos que ainda não estão na Luz. Não sabemos quando seus olhos serão abertos e compreenderão. E como poderemos ser a luz para o mundo se afugentarmos todos que estão nas trevas?
Essas palavras acalmaram os mais brandos, mas não afrouxou os punhos que já estavam cerrados. Os mais fervorosos alimentaram ainda mais sua devoção a ele, como a um espírito elevado, que consegue manter a placidez frente a adversidade, mas como não são o eleito de Caevanrás, podiam continuar com ódio.
- Diga-me, filho de Deus, qual tua dúvida?
O cético respirou com algum alívio, livre para expressar o que realmente pensava, mas também reconhecendo a autoridade daquele bom homem. Devia ser educado e cauteloso. Talvez até devesse ter cuidado com o que pensar... talvez estivesse enganado. Afinal, não tinha provas que aquele homem era uma fraude, então não podia dizer que ele era.
- Onde são os Campos Elísios? E onde fica Caevanrás?
Os seguidores do Caminho viram quão Dom João Miguel estava certo: o cético já demonstrava desejo de ter o conhecimento da Luz. E eles mesmos queriam havia tempos resposta àquelas mesmas perguntas, mas nem os arcebispos tinham coragem de pedir para saber. "Talvez o Príncipe veja essa pergunta como uma dúvida de nossa alma", acautelavam-se uns aos outros.
Com ar resoluto, de quem conhece muito além disso, Dom João Miguel falou:
- Caevanrás não é deste mundo. Mas tal como é a terra em que pisamos, Caevanrás já foi. E como Caevanrás é, esta terra será. E os filhos da Luz a herdarão e serão seus reis e rainhas para sempre.
Muitos dali derramaram lágrimas de alegria ao ouvir essas palavras. Mas o cético viu que era inútil por em questão Caevanrás. Preferiu não se deixar levar pelos encantos do príncipe e voltar ao que havia perguntado.
- E os Campos Elísios, onde ficam?
A impaciência retornou com mais intensidade nos fervorosos. Mas Dom João Miguel falou com uma voz pausada, introspectiva, etérea, como se estivesse recebendo uma revelação divina ali naquele instante:
- Os Campos Elísios são Caevanrás na terra. Tudo da minha vida antes de entrar nos Campos deixei para trás e já não me lembro. Lá nasci de novo. É um lugar sacrossanto.
- Mostra-me no mapa o lugar, para que eu vá conhecer teus mentores.
Os adeptos já murmuravam com raiva novamente. Aquele não buscava a Luz, era somente um descrente curioso. Admiravam a paciência do príncipe. Perguntavam-se por que ele não lhe lançava uma maldição do céu que lhe calasse a boca, ou expusesse seus pecados da sua vida, envergonhando o cético em público.
- Para os fiéis, tudo é claro e nada é encoberto. Tudo ser-lhes-á dado a conhecer em seu devido tempo.
Mas o cético já ria percebendo que essa era uma típica resposta charlatã e evasiva. Dom João Miguel, porém, sendo um homem inspirado falou para todos (porque mesmo os seus seguidores se entristeceram com essa profecia, receando não estarem sendo fiéis o suficiente, ou terem falhado em alguma coisa que os desqualificassem, e temiam jamais saberem sequer onde nessa terra ficam os Campos Elísios).
- O mundo é profano, e em mapa nenhum deste mundo foram desenhados os limites dos sagrados Campos. Os que lá entram e de lá saem fazem juramento de jamais revelar os seus nomes, sinais e símbolos aos filhos desse mundo. Lá nos é ensinado as palavras chave para receber mais Luz e conhecimento de Caevanrás e um dia habitar em sua glória. Vemos o verdadeiro mapa deste mundo, e de muitos outros mundos e principados. Não vos inquieteis. Hoje entrarei no templo, e orarei nas suas salas superiores. Suplicarei aos deuses a permissão de vos ensinar tais maravilhas e de desenhar o verdadeiro mapa deste mundo. Precisarei que toda a congregação jejue em suas casas e ore com todo o fervor. Iniciemos agora o jejum. Jogai fora as águas velhas e tomai somente água nova ao nascer do sol, até que venha a Luz de Caevanrás sobre seus filhos no templo.
Depois de quase uma semana de jejum, de toda comunidade da Luz, reuniam-se no templo temerosos, com a fome atiçando a inquietude. Alguns abriam os olhos durante a prece no salão comum e olhavam para o irmão ao lado com desconfiança. "Será que ele está jejuando mesmo?" ou "Duvido que ela esteja falando as palavras do jeito certo nas orações." Isso pela demora de o príncipe receber a revelação do Verdadeiro Mapa deste Mundo. Outros cumprimentavam suspentando dos olhos desidratados do outro, que a demora podia ser por causa de algum pecado não confessado dele. Vigiavam-se. Criaram mais regras para o jejum, esperando que pelo zelo estrito fossem aceitos pelos deuses. Excomungaram os que não cumpriam, ou cometiam algum delito moral. Estavam assim, após quase uma semana. Enfim, desceu do templo o arquiduque e os arcebispos. Mostraram aos fiéis o mapa.
- Enfim, os deuses de Caevanrás aceitaram o sacrifício de seus filhos neste mundo. Viram sua purificação e derramaram sua Luz sobre o templo - falou o arcebispo Couto, - o seu Príncipe ungido desenhou o verdadeiro mapa e está aqui, diante de nós.
Era um mapa do mundo bem parecido com os que se via em qualquer atlas das bibliotecas. Porém com alguns nomes e símbolos inscritos no papel, e ilhas nunca desenhadas. O príncipe desenrolou o mapa enquanto cantavam hinos. Ele apontou uma das ilhas novas e disse:
- Eis aqui, nestas terras se estendem os Campos Elísios. Exultai, ó filhos da Luz, pois o fim se aproxima e muitos grandes mistérios dos céus vos serão revelados. Mistérios que reis deste mundo morreram desejando conhecer. E agora vos dou a conhecer as ilhas santas dessa terra.
Seguiram-se testemunhos dos arcebispos de como ele orava a cada traço que fazia no mapa, de como todas as terras se revelavam na mente dele, sem que precisasse consultar nenhum atlas. De como se encheram de Luz e sentiram a glória de Caevanrás repousar sobre eles.
Os mais ricos dos adeptos da religião introduzida por Dom João Miguel pagaram pilotos e fretaram avião para sobrevoarem as ilhas, em especial a dos Campos Elísios. Pediram permissão ao arquiduque, que a princípio negou, mas de tanto insistirem, não só esses ricos, mas os membros zelosos e mesmo a imprensa, Dom João Miguel concedeu.
Viajaram até onde deveria estar a ilha e só havia mar. Seguiram para cada uma das outras ilhas sagradas, e nada encontraram. Nem mesmo pedras se elevavam sobre as águas, exceto uma, que na maré baixa, elevava-se uma bancada de uns dezesseis metros quadrados de areia, que no mapa tinha o nome de Floese. Ao avistar essa areia, um dos que estavam no avião gritou:
- É Floese! É Floese!
- Mas tão pequena... - falou baixo e duvidoso um deles
- E é o quê, então? - disse outro, em desafio.
Depois de um breve silêncio, outro concluiu a conversa:
- Mas é claro que não encontraríamos! Essas terras santas foram ocultadas de nossos olhos naturais. Agora está provada nossa indignidade, mas esta ilha ali nos prova a veracidade do caminho da Luz e a legitimidade de nosso príncipe. E a vemos por grande misericórdia dos deuses.
Quando retornaram ao arquiduque, relataram o que aconteceu. Ele ficou um tanto consternado, mas logo falou a eles:
- Ninguém vai a estas ilhas: o filho da Luz é chamado a elas. Vocês acham que recusei lhes permitir ir por capricho meu? Acham que os deuses de Caevanrás (que criaram cada uma das ilhas do mar, os peixes, as aves do céu e as bestas da terra) não são capazes de esconder de vossos olhos? Ou de mover as ilhas para outro lugar? Agora o mapa que nos foi dado é apenas um retrato do passado, salvo por Floese, que permaneceu como um testemunho para vós, dado pela misericórdia de Caevanrás.
A partir de então os que se aventuraram no avião nunca mais tiveram cargo algum no sacro-ministério, e eram vistos como indignos. Também, aconteceu de alguns abandonarem a religião. Estes passaram a ser vistos como incrédulos, apóstatas, fracos na fé. "O caminho da Luz não é para os ricos, nem para os que procuram provas, mas para os obedientes", era comum se falar nas pregações.
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Contos d'Outros Mundos
Short StoryPoderia ter sido, mas não foi. Seria, mas não é. Acontecerá, talvez. Parece com aqui, mas deve ser de lá.