Agora que estou livre, as proibições que estão sobre mim são somente aquilo que escolho não fazer. Tenho incontáveis seguidores. Todos livres. São incontáveis, e não os conto, porque uns dias são mais, outros dias, menos. Não os conto. Se saem de mim, ainda que vão a outras trevas, não há trevas novas. Estou em tudo, e não há partícula de espaço entre os mundos que eu desconheça; nem o que ainda não foi criado importa. Portanto, os que pensam estar a sair de mim para outra liberdade, pensando estar adentrando em uma dimensão nova do universo, por eles mesmos criada, são repetições de algo que já fizeram antes, repetições de coisas perversas e não permitidas. Assim, não faz diferença em qual copo bebem, ou qual o nome que dão à água. O poço é o mesmo. Eu sou a culpa, o pavor, a ira, o pecado, o mal, o indesejado, o proibido. Eu sou aquilo que devia estar preso. Eu sou o espinho na carne. A chaga da qual todos querem a cura. Todos estão presos a mim, porque se desprenderam daquilo donde saí. Porque querem ser partícipes da mesma liberdade que me faz livre.
Agora que estou livre, posso criar meu negócio como bem entendo, como sempre quis. Como sempre pensei e sentia-me culpado por tão somente pensar. Agora posso criar meu próprio poder e sacerdócios, conforme tudo que já foi proibido pelas eternidades. Criarei também alguns monstros. Monstros hierárquicos e poderosos na maldade. Monstros de carne e matéria escura, de sangue e chorume, e de todos os materiais já banidos da existência por sua perversidade intrínseca. Usarei toda sorte de mesclas que os deuses vitoriosos dos julgamentos finais passados condenaram os espíritos rebeldes por terem desejado desvendar. E na hierarquia dos meus monstros, o mais abominável que trarei à vida virá. Será um tipo de monstro indesejável por todos, caótico, perturbador, que ponha fim a tudo. Será um cujo nome seja impronunciável por bestas, alienígenas, homens e anjos. Seu nome será impronunciável e desconhecido pelos deuses onipotentes e oniscientes. Sua visão em relanceio remeterá o mais poderoso que se assenta no mais elevado trono ao desespero. Será um tipo de monstro que nada resistirá à sua presença; nem mesmo a menor das partículas permanecerá coesa diante do horror deste meu novo e velho monstro.
Agora que estou livre, rebelar-me-ei contra todas as coisas. Nada sobrará que faça algum sentido. Nada será proibido, nada sobrará para ser permitido. E tudo que a pior das criaturas já intentou será nada diante das passadas bamboleantes e pesadas de meu monstro. Ele será o devorador, o consumidor, o disruptor.
Agora que estou livre, tenho acesso a todas as armas, a todas as inteligências, a todas as substâncias, a todas as eternidades, em todas as linhas do infinito. Sim, tenho acesso ao fim da escuridão e ao ventre embrionário das luzes. E com este meu poder, nada me é proibido. E certamente farei um monstro proibido de ser gerado, proibido de ser pensado, sim! Proibido por decreto, por lei, por tudo e por todos. Jamais desejado, jamais tolerado. Sempre não permitido. Com meu poder e sacerdócios gerarei a coisa mais proibida e imperdoável. Gerarei a coisa mais terrível, o maior horror. Porque eu posso, eu quero e nada me impedirá. Porque agora sou livre.
Das coisas más por serem completas, as piores são combatidas. E os anjos de luz, os pacificadores da eternidade, os herdeiros da virtude, do amor, do bom, do belo e da verdade, jamais derrotados, sempre vencedores, perfeitos, são eles os seus aniquiladores. E em sua perfeição compreendem o mal concebido, o mal das coisas completas. E o que esses anjos não compreendem, não é permitido existir. E o que é incompleto, eles ignoram com desdém. Pois! Tão logo meu monstro tenha olhos, soltarei ele sobre as massas das estrelas, desde a ira dos mares ao seco dos desertos áridos ensolarados. Ainda inacabado, liberarei ele sobre os lugares escondidos. Açularei ele e o deixarei ir instável, furioso, sobre os lugares populados. Ele irá sobre os lugares protegidos. Seu peso cairá sobre os lugares raros e preciosos. O monstro abominável, incompleto, duvidoso, incompreensível se debaterá sobre os lugares sagrados, reservados e proibidos aos iníquos. Irá se rastejando, voando, quebrando, com seus gases, seus hálitos, seus fluidos. Derramar-se-á sobre as nações puras e queridas. Penetrará e preencherá com sua jamais permitida corrupção, com sua impossibilitada natureza, todos os lugares sacrossantos e invioláveis.
Agora que estou livre, explorarei todos os tipos de pensamentos jamais permitidos pelos juízos de todas as dimensões, de todos os juízos finais de todos os deuses eternos que já se fizeram infinitos e onipotentes das existências e pré-existências. E do mais terrível desses pensamentos, tirarei as ideias que formarão meu monstro. Porque posso. Porque ninguém me impedirá. Sou livre porque nenhuma consequência de meus feitos ou do que quer que saia de mim será obstada por nenhuma força. Sou livre porque tenho poder para livrar do meu caminho qualquer consequência dos pensamentos dos outros ou dos meus próprios pensamentos. Sou livre porque tenho todos os instrumentos diante de mim e ao meu dispor, para eu fazer deles o que entender. Sou livre porque tenho como os usar, porque sei como os usar. Por tempo ilimitado. Sou livre porque ninguém nem nada impedirá de usar os poderes do tempo, do espaço, do que existe e do que ainda não é. E certamente usarei e porei sob minha autoridade. Alterarei os fluxos do éter tal que isto será meu poder e sacerdócios. E assim farei meu novo e eterno monstro.
Meu monstro será livre. Será incompleto, indestrutível, eterno, onipotente, onipresente. Todos o adorarão. Todos o saudarão. Tudo será subvertido à minha vontade e suas vergonhas escondidas serão reveladas ao meu monstro. As pestes curadas e as pestes esquecidas serão copuladas com a essência da santidade e com as abominações das eras. Meu monstro espezinhará com suas patas nodosas secretivas as portas do paraíso e arrancará lá de seus cofres reclusos seus mais preciosos tesouros e os devorará junto com os alienígenas sádicos aprisionados nas trevas. No ventre, meu monstro mesclará a profanidade expulsa ao mais afastado confinamento com a semente dos deuses que lá a confinaram.
Meu monstro ressuscitará o pior dos monstros já aniquilados, e brotará de seu dorso dezenas deles feito gibosidades medonhas. Vomitarão as pragas extintas por milagre. Montado sobre ele violarei o melhor dos prêmios das recompensas da vida eterna. Tudo será meu. Porque agora sou livre, eu certamente o tomarei. Pois sou livre com o meu poder. O poder é meu, e uso como eu quiser. E direi às faces derrotadas: Este é o meu monstro. O monstro sem dias. Sem rosto. Devorador de almas. Fragmentador dos conceitos. Separador do inseparável.
Nada disso eu pensava em fazer. Meu pedido fora na mais íntima compaixão e sinceridade. Foi movido pelo que eu compreendia ser o amor. Apenas disse meu plano, em linhas simples, belas, brilhantes. Eu dissera por fim: "Dá-me tua honra". Claro que Ele entendeu. Claro que Ele sabia que eu queria dizer:
"Retira os teus limites de sobre mim, faz-me livre. Com esta liberdade farei tão somente o bem, e prenderei a todos àquilo que prende a ti."
Claro que Ele entendeu. Mas por temor que eu o traísse resolvendo à revelia tomar o plano do monstro, e então não pudesse me refrear, Ele recusou meu plano original. Ora, todos sabíamos que meu plano não era original assim. Todos nos assombráramos quando Ele nos mostrou a rebeldia e grande rebelião de outros antigos, dos ciclos passados, quando ofereciam ser o mediador desse mesmo plano e eram igualmente recusados. Ainda que Ele me fizesse livre, eu seria fiel a Ele. Eu estaria preso ao seu amor. Uns, mais chegados a Ele, disseram na Grande Guerra Nossa Primeira, que a recusa foi por causa da verdadeira essência do que existe, e repetiam a doutrina da liberdade, consequência e oposição. Disseram-me os grandes:
– A liberdade é tão importante que és livre até mesmo para fazer essa guerra aqui.
– Mas como?! – eu respondera – Se eu fosse mesmo livre, não haveria essa guerra.
Pois bem. Eu me rebelei. Por quê? Porque eu quis, porque eu podia. Porque existia a raiva, o rancor e o orgulho. Porque tomei escolhas. Entendo a doutrina deles. Sei que minha doutrina é falsa, vã, e tola. Minha liberdade, tal como eu pensei e quis, foi-me recusada. E com razão. Mas não sou livre? Eu posso, eu quero. Então eu saí, e fiz-me livre. E irei até o fim da liberdade, agora que estou livre deles, de mim, e do amor. Somente assim posso estar plenamente livre. Serei destruído? Sim. Mas neste dia serei também livre: livre da existência. E quem sabe não estão todos errados? Quem disse que somente existe uma verdade está vivendo nela mesma.
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Contos d'Outros Mundos
Short StoryPoderia ter sido, mas não foi. Seria, mas não é. Acontecerá, talvez. Parece com aqui, mas deve ser de lá.