Eu mutante

183 14 0
                                    

De novo aquele conhecido barulho da fechadura, a porta se abrindo com rangido seco. Deve ser ele que chegou. Sim, seu mostro particular. O coração de Nick dispara.

Todo dia é assim, já passa da meia-noite quando ele chega. Seu padrasto. Na cama ao lado, sua irmazinha Estefany, descança tranquila, sem desconfiar de toda angustia de sua irmã mais velha. Nicoly prefere assim. Ela só tem seis anos, Nick não quer que ela sofra o que ela mesma sofre todos os dias.
Nick sabe que sua mãe também deve estar apreensiva com a chegada de seu marido.
Desde que se conhece por gente, Nicoly lembra que ele sempre tratou mal ela e sua mãe. Com enfase nela. Nicoly pensou que podia ser por causa da sua cor, pois ela e sua mãe tinham a cor do chocolate enquanto seu padrasto era branco. O preconceito só seria mais um dos inumeros defeitos de carater dele. Mas quando sua irmazinha nasceu, ela persebeu que o mostro, chamado Lucio, se derretia de amores por ela e ela compartilhava da bela cor de Nick e sua mãe.
Nicoly podia ter se revoltado de ciúmes com sua irmã, mas não. Sua irmã era o alento, no inferno de sua vida. Quando Estefy, como ela a chamava carinhosamente, estava por perto a ira do monstro se aplacava. Nicoly a amava muito.

Pronto a porta abriu e fechou. O monstro chegou.
- Cadê a comida mulher? Perguntou o seu padrasto a Helena, sua mãe.
- Vou já esquentar. Respondeu Helena com voz tremula.
Ele chegara bêbado de novo, indício de confusão.
- Já era pra estar pronto. Você não presta pra nada.
Nick ouvir o barulho do tapa.
O inferno começara. Nesses quinze anos de vida, Nick sempre vivenciava a mesma coisa. Não demoraria para ele mudar o foco para ela.
- Onde está aquele menina? Não me diga que foi dormir antes de eu chegar.
O coração de Nicoly bateu mais forte.
- Ela estava cansada. Interveio sua mãe.
- Cansada? Quem trabalha aqui sou eu. Eu é que estou cansado.
Os passos do monstro se aproximam de sua porta, que foi aberta. Ela o sentiu agarrar seus cabelos cuidadosamente trançados em um canicalom bem feito. Ela não emetiu nenhum som enquanto era arrastada para a sala.
Nick foi lançada no chão como nada mais do que um saco de lixo.
- Eu já não falei, que quando eu chegar, eu quero as duas aqui pra me receber? Vosiferou o monstro com o rosto rubro de furia infundada.
Nicoly não se atreveu a responder, mas as lagrimas escaparam de seus olhos. Ela se sentia tão impotente.
- Responda magrela. Gritou o padrasto lhe dando um tapa de mão aberta que deixou seus ouvidos zumbindo.
- Desculpa, eu estava com sono e Estefany ia dormir, ela não gosta de dormir sozinha. Nick se justificou com voz estrangulada.
- Não ouse usar o nome da minha filha no meio de suas desculpas esfarrapadas. Seguiu-se mais dois tapas.
- Eu não sei o que o senhor quer. Seja o que for que eu faça, sempre me bate de um jeito ou de outro. Respondeu Nick juntando um pouco de coragem.
- Ah, é assim ingrata. Acolhemos você e é assim que nos paga. Nick ficou confusa. Como assim acolheram? Mas aquele pensamento ficou esquecido quando ela viu que seu padrasto tirava o cinto de couro de sua calça jeans surrada.
- Não por favor. Reagiu ela colocando as mãos a frente como se pudesse se defender.
- Agora você vai ter o que merece. As cintadas doiam até os ossos. Enquanto ela era açoitada sua mãe apenas olhava com uma mão cobrindo a boca.
Derrepente aquela situação de abuso ficou insustentável na mente de Nick e uma fúria avassaladora irrompeu de seu interior, ela enxergou tudo vermelho. Quando Nick voltou a si, seu padrasto estava caido aos seus pés com olhos arregalados, cinco arranhões no rosto e uma ferida no ombro. Ela olhou para sua mãe como a buscar resposta e viu pavor no seu rosto. Nick deu um passo em sua direção, mas a sua mãe se afastou quase caindo, então ela olhou para o velho espelho rachado da sala e se apavorou. No espelho havia uma garota com orelha negras de gato em meio as tranças, presas enormes brancas como leite, olhos amarelos com a iris como de felino. Ela olhou para suas mãos e viu garras enormes, um rabo balançava por baixo de sua camisola.
- O que aconteceu? Se desesperou ela.
- O que aconteceu? Disse o padrasto levantando - Você é a droga de uma mutante. Eu não disse Helena? Virou para falar com a mãe de Nick - Quando você encontrou isso abandonada na nossa porta, eu disse que não devia ser boa coisa. Mas não, você tinha que querer ficar com esse filhote de bicho, essa aberração. Zombou ele apontando Nick com desdém.
- Como assim? Eu não sou filha da minha mãe? Perguntou Nick confulsa. Em sua lingua resistia o amargo gosto de sangue de seu padrasto.
- É logico que não! Algum desses montros mutantes abandonou você na nossa porta. Embora na época não sabiamos que você era uma mutante, se não você já estaria morta. Respondeu com crueldade o monstro.
- É mentira! Mamãe? Nick olhou Helena esperando que ela o desmentisse, mas ela assentiu com a cabeça e olhou para baixo.
Nicoly levou a mão ao rosto em desespero.
- Devemos chamar os caçadores para exterminar essa coisa.Disse Lucio com ódio.
Nick ficou ainda mais desesperada. Ela não queria morrer, nem ser trancafiada para sempre. Antes que Lucio alcançasse o telefone implantado em sua mão que todos tinham( o qual além de fazer ligações enviavam informações pessoais ao governo central da área), Nick sentiu seus instintos selvagens de sobrevivência tomarem conta dela. Nick começou a ataca-lo, com arranhões e mordidas. Ele não tinha chance frente a recém descoberta, força animal da menina. Lucio já colecionava; três mordidas na perna, uma no braço e vários arranhões. Nick continuava atacando relembrando tudo o que ele fez a ela e sua mãe. Mas a voz de sua mãe a parou.
- Saia de cima do meu marido! Nick olhou para trás, Helena segurava a arma de balas de ferro de seu padrasto, velharia de séculos atrás, mas que ainda funcionava. Seu padrasto já a ameaçara uma vez atirando pra cima.
- Mamãe? Perguntou Nick confulsa
- Vai embora. Deixe a nossa familia em paz. Gritou Helena. Nick saiu de cima de Lucio com a cabeça baixa derrotada. Ele apenas gemia no chão.
- Vou pegar minhas coisas.
Quando ela foi em direção ao seu quarto, Helena correu até seu marido. Nick se sentiu traida. Talves esses dois se mereçam afinal. Pensou
- Não ouse tocar na minha filha. Ameaçou Helena olhando Nick com a cabeça de Lucio acomodada em seu colo.
- O que você pensa que eu sou? Gritou Nick com uma dor enorme no peito - Eu jamais machucaria a Estefy. Nick gritou entre lagrimas.
- Eu penso que você é uma mutante, um monstro que eu não sei do que é capaz. Gritou aquela que Nick sempre pensou ser sua mãe.
- Monstro? Nick riu sem humor - Monstro é esse a quem você acolheu em seu colo. Você nunca me defendeu, não importa o que ele fizesse, você nunca interviu. A verdade é que você nunca me amou. Nick enchugou as lagrimas se arranhando um pouco no processo.
- Apenas pegue suas coisas e vá embora. Disse Helena sem aparentar interesse no desabafo de Nick.
- Não se preocupe. Respondeu Nick com a mão na maçaneta - Logo você nunca mais terá que olhar para a minha cara.

Nick entrou silenciosamente e pegou sua mochila velha, a nova tinha gps embutida e ela não ia querer ser encontrada. Ela abriu o guarda-roupas com cuidado passando sua digital no leitor. Pegou algumas roupas, um chinelo e uma sandalia. Pegou um porta retrato dela e sua irmã abraçadas. Nick guardou com todo carinho. Ela olhou em volta para ver pela ultima vez seu quarto, o abajur de neon que mudava a cor do ambiente, a cama que dobrava com apenas um botao, a janela que quando fechada mostrava a paisagem holografica de uma floresta. Tudo aquilo que fora dela por quinze anos. Nick lembrou- se do dinheiro na ultima gaveta da comoda fruto do seu trabalho de limpeza na casa da vizinha. O robô doméstico da senhora estava quebrado e ela pagara 300 dolares( o nome do dinheiro foi uma homenagem a uma moeda antiga que gerenciou o mundo tempoa atrás, soube Nick) e 55 cents. Não era muito mas tinha que servir. Ela guardou com cuidado dentro da meia em seu tênis.
Depois ela se aproximou de Estefy. Sua irmazinha ressonava tranquila, mas quando Nick beijou Estefy na testa a pequena abriu os olhos
- Mana? Perguntou Estefy confulsa.
Nick se assustou pensando que ela podia ver sua transformação, mas o abajur estava apagado, apenas uma fresta de luz na porta esboçava uma luz tenue, porém Nick enxergava tudo perfeitamente no escuro agora.
- Sim maninha. Disse Nick acariciando o rosto da irmazinha.
Estefy retribui a caricia com suas pequenas mãozinhas parando nas orelhas de gato nos cabelos de Nicoli.
- Esta usando máscara de gatinho, mana? Perguntou Estefy com sua doce voz infantil.
- Sim maninha. Mentiu Nick acariciando o rosto dela com a costas da mão tomando cuidado para não aranha-la com suas garras.
- Acende a luz pra mim vê, mana.
- Agora não Estefy. É hora de dormir. Negou Nick com carinho.
- Só um pouquinho mana. Nick sorriu com a insistência da garotinha.
- Amanhã cedo você vê. Agora deita bonitinha pra dormir. Estefany deitou obedecendo a irmã, Nick puxou o cobertor até o queixo na menina.
- Maninha. Aconteça o que acontecer saiba que eu te amo muito. Vou estar sempre pensando em você. Nick tentou conter as lagrimas, mas uma teimosa rolou sobre seu rosto.
- Eu também te amo de montão. Do tamanho de uma montanha. Disse a pequena.
- Eu te amo do tamanho do mar. Rebateu Nick sorrindo perante a brincadeira infantil.
- Eu te amo do tamanho do universo tudinho.
- Ok. Acho que você venceu. Agora dorme. Boa noite minha princesinha. Desejou Nick com amor.
- Boa noite, mana.
Em pouco tempo a garotinha dormia. Nick a beijou mais uma vez com ternura. Depois levantou-se despiu-se de sua camisola e vestiu uma roupa mais adequada pra sair a rua. Foi dificil acomodar sua cauda na calça jeans. Por fim Nick a deixou solta por cima da calça. Ela olhou uma ultima vez pra sua irmã e saiu fechando a porta atrás de si. O padrasto não estava mais no chão, sua mãe estava em frente a porta do quarto do casal com a arma ainda na mão.
- Chamei a aeroambulância. É melhor você ir embora logo se não quiser ser morta. Helena avisou com voz dura.
- Pode deixar que eu já estou indo. Nick tirou sua chave do bolso, passou seu dedo sobre a tranca digital depois inseriu a chave na tranca manual e girou abrindo a porta.
- Me devolve a chave! Gritou Helena.
Nicoli a olhou com magoa, lançou a chave que caiu aos pés da mulher.
- Cuida bem da Estefy. Nick ajeitou a mochila nas costas.
- Adeus. Nick se despediu e sem esperar resposta saiu e correu pela noite buscando se afastar o mais rapidamente possível do seu antigo lar.

Unhas e PresasOnde histórias criam vida. Descubra agora