Capítulo 1

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  COMPLETO ATÉ DIA 24/06/17  

Eu sempre fui um peste. Hoje em dia eu percebo isso, mas não me arrependo de nada que eu tenha aprontado na infância.

Quebrei o braço ao cair do telhado da escola por fugir de uma aula chata. Peguei uma pneumonia por não escutar e entrar no açude no meio do inverno porque estava com vontade de nadar. E nem comento tantas outras vezes que eu me acidentei por aí.

Até os meus dezenove anos eu arrisquei todas as leis da física e aprendi no corpo o significado delas, ainda mais a lei da gravidade. Meu pai só me dizia para me cuidar para que não me machucasse grave, de resto, até laçar um cavalo que não era domado eu fiz, e com isso desloquei o ombro pela terceira vez.

Hoje em dia, cada vez que eu entro em um plantão do pronto-socorro eu me vejo em cada criança que entra aqui com algum machucado. E para o delírio das mães, eu ainda conto para elas tudo o que eu aprontava enquanto os atendo.

Essa é uma das coisas que eu mais gosto na minha profissão. Ajudar as pessoas a não sentirem dor e descobrir o porquê delas estarem sofrendo. Entro em cada plantão e me dedico cento e dez por cento para poder descobrir tudo o que estiver ao meu alcance e ser útil nos momentos em que elas quiserem desistir de tudo.

"Ainda não", eu falo nesses momentos, "ainda tem muito que ver nessa vida". E geralmente recebo um sorriso gratificante de agradecimento.

Esse, para mim, é o melhor pagamento que eu poderia receber. Claro que quando os pacientes voltam com uma sacola de laranja de casa, ou então uma galinha de fora, eu não vou recusar! Vou aceitar de todo o coração e agradecer. Quem em sã consciência recusaria isso? Eu que não.

Atender em um hospital vinculado ao pronto socorro público é um mar de emoções. O SUS, dependendo do lugar, pode ser uma porcaria, mas se depender de quem está trabalhando, a coisa pode ficar um pouco melhor. Não é porque o ambiente de trabalho não é, em todo o tempo, cheio de alegria, e ainda sem todos os equipamentos que se precisa, que eu vou descontar nos pacientes. Ou pior, nos colegas que estão ali na mesma situação que a tua, trabalhado? Nunca. Escolhi essa profissão, estudei para isso e vou atender todos os pacientes com o máximo de dignidade que eles têm que receber.

Teoricamente, eu não preciso trabalhar. Logo que eu me casei, meu pai fez questão de dar a minha parte da herança. Um terço da escola a qual ele construiu do zero e hoje em dia é referência em ensino na cidade. E possuo mais dinheiro que os meus netos, filhos que a minha filha ainda irá ter e que não vão precisar se preocupar em passar dificuldades.

Eu detesto, com todas as minhas forças aquela escola. Por mais que seja uma entidade altamente lucrativa, mesmo com tudo dividido entre eu e os meus dois irmãos, para mim é um lugar que eu não gosto nem de entrar. Irônico.

Vi o meu pai se acabar por acreditar naquele sonho. E quando digo se acabar, foi porque isso literalmente aconteceu. De tanto trabalho e preocupações, ambos deram um empurrãozinho e foram um dos grandes agravantes para o seu Alzheimer. O seu declínio foi rápido e perturbador para mim, que estava vivendo o período que eu mais precisava dele. Fora os anos de trabalho ininterruptos, sem tempo para a própria família. Hoje eu me pergunto, do que adiantou se matar trabalhando para nem poder aproveitar os frutos que tudo isso rendeu?

Por essa questão, que eu acompanhei de perto na minha infância e adolescência, eu sabia que ficar trancafiado naquele prédio entre mil problemas, não era para mim. Então precisei encontrar um sonho.

Escolhi a medicina depois de uma das minhas várias visitas ao hospital com algum machucado. O da vez foi um corte no supercílio que eu jurei, no alto dos meus dez ou onze anos, que iria morrer por tanto sangue que jorrava de mim.

LuizOnde histórias criam vida. Descubra agora