No elevador climatizado, o homem alto enfiou o dedo entre a gola apertada e o pescoço, sentindo o fluxo de sangue pulsando naquela região. Desatou o último botão da camisa, afrouxando um pouco o nó da gravata. Bem melhor, sorriu aliviado. Os ponteiros do relógio indicavam que faltava meia hora para o início da próxima atração da Rádio Poesia: o Programa Prosa em Verso, apresentado, dirigido e produzido por Geraldo Amorim, radialista e poeta, nas horas vagas.
Nono andar do Edifício Dakota. Estúdios, Redação, Departamento Comercial e Financeiro da Rádio Poesia. Geraldo, o mais experiente funcionário da emissora, segundo suas próprias palavras: 15 anos de casa, apresentando um programa de entrevistas com escritores dos mas variados segmentos: poetas, cronistas, romancistas, contistas, autores de livros técnicos, esotéricos, de auto-ajuda. Galanteador, usava de adjetivos que, quase sempre, mexiam com a vaidade dos entrevistados. A estratégia tinha dupla utilidade: quebrava o gelo entre os desconhecidos e abria caminho para maiores intimidades.
Faltavam 15 minutos para a atração entrar no ar quando Geraldo foi informado que Danni Mathis, autora do livro Amores Virtuais cancelara a participação no programa. Coçou a nuca, costume que indicava seu nervosismo.
— Temos plano B, Ritinha? — peguntou para coordenadora artística da Poesia.
— Acho que não. Hoje vai ter que rolar um sarau. Declama uma poesia, indica um livro, improvisa aí.
— Vai ser o jeito. Sarau no Prosa em Verso. Pede pra produção ajeitar a vinheta e as trilhas pra declamação, meu anjo?
— Tranquilo, GG! — respondeu a moça, piscando e jogando beijinho para o apresentador. Nunca tiveram nada além do relacionamento profissional, mas ela adorava provocar, fazendo um jogo de bate-assopra com o locutor cheio de lábia.
Enquanto Rita providenciava os detalhes técnicos, o apresentador foi em direção ao estúdio B, fazendo exercícios vocais de aquecimento pelo corredor. Os estalos com a línguas, muxoxos com os lábios e e grunhidos em escalas diferentes divertiram o garotinho que passava de mãos dadas com sua mãe. Geraldo sorriu para o garoto, que retribuiu mostrando que estava banguelinha. Acenou com a mãozinha, antes de entrar no elevador.
No estúdio, as notas da guitarra flamenca flutuam feito balões de hélio, deslizando delicadamente das caixas de som. Na parede, o luminoso " no ar ' 'brilha em vermelho, abrindo o microfone por onde passa a voz de Geraldo rumo a milhares de receptores espalhados pela cidade.
— Paco de Lucia, senhoras e senhores. É com poesia em forma de música que abrimos nosso Prosa em Verso desta quarta-feira, dia 06 de maio . Infelizmente, a nossa entrevistada de hoje, a escritora Danni Mathis cancelou a sua participação por motivos de força maior. Fica o convite para que ela venha numa outra oportunidade. o livro Amores Virtuais é um best seller e muitos fãs esperam sua entrevista, que torcemos que aconteça muito em breve. Bem, Danni não veio, mas nós temos dois exemplares desse sucesso para as duas primeiras pessoas que ligarem agora para a Rádio Poesia. Vamos de boa música e, ao retornamos, a primeira ligação leva um exemplar de Amores Virtuais! Prosa em Verso está no ar. — exclamou, sinalizando para o técnico soltar a vinheta e a música. Os primeiros acordes de Suspicious Minds invadiram as ondas do rádio, enquanto Geraldo buscava um soneto ou poema para declamar no final do programa.
Quem escolher, entre tantos? —pensou. Florbela Espanca? Neruda, Manoel Bandeira? Fernando Pessoa?
We're caught in a trap
I can't walk out
Because I love you too much baby
É, meu amigo de Memphis...quem nunca caiu numa cilada que atire a primeira pedra — filsofou sozinho, enquanto fazia a busca pela poema. Tantos mestres, tanta riqueza, tão pouco tempo.
Why can't you see
What you're doing to me
When you don't believe a word I say
Vinícius, Shakespeare, Poe? A cada minuto a indecisão aumentava. Quando se deu conta, Elvis já estava em fade away. Colocou os fones enquanto observava o técnico avisar atráves de gestos que tinha alguém na linha.
— Prosa em Verso na Rádio Poesia. Senhoras e senhores, the king! Elvis Presley dando o ar da graça em nossa tarde, com poesia em forma de canção. Aplausos, produção!
O som das palmas se fundiu ao final da canção, recurso usado desde o início das transmissões, mas que o que apresentador insistia em usar. O técnico de som apontou para o relógio, sinalizando o passar do tempo. Hora de acelerar as coisas.
— Já temos um ouvinte que vai levar um dos livros dessa tarde. Boa tarde, com quem falo?
— Me chame de O livreiro — respondeu a voz, do outro lado da linha. Uma voz grave, modificada através de recursos eletrônicos.
— Wow! E eis que Darth Vader nos dá a honra de sua presença! — exclama, fazendo um sorriso no vidro do estúdio. O técnico capta a mensagem e solta a vinheta da risada. — Então é fã de Danni Mathis, senhor Vader?
— Muito espirituoso, Geraldo Amorim. Na verdade, eu vim lhe avisar sobre sua correspondência. É prudente cuidar melhor das coisas que lhe enviam. Pode ter coisas de seu interesse, ali. Guarde seu livro para outro ouvinte. Ah, e quanto ao poema que procura para declamar, a sugestão está em sua caixa de e-mail. Nos encontramos em 06 de junho.
O tão familiar barulho de fim de ligação sinalizou que o ouvinte não estava pra conversa fiada. Surpreso, o apresentador chamou as outras duas ligações, premiando os ouvintes, mas com o pensamento voltado para as palavras que ouviu na ligação misteriosa. Com um sinal, pediu a entrada do bloco comercial. Girou a cadeira para esquerda, atirando o par de mãos no teclado, dedos frenéticos digitando comandos. Caixa de email, entre spams, pedidos, lembretes e mais lixo eletrônico, uma mensagem nova. Seu emissor: O livreiro. No corpo da mensagem, poucas palavras:
Apenas leia (o anexo) em seu programa, já que haverá bastante tempo...
O Livreiro.
PS: Tem carta pra você. Gaveta do meio. ;)
Impressionado, abriu a gaveta e o anexo quase ao mesmo tempo.
Envelope do meio. Papel pardo. Viu um B que despontava do envelope ainda encoberto.
Na tela do computador, um poema:
(...) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?Charles Bukowski
Quando deu por si, já tinha declamado o poema, surpreso com a súbita chegada de Rita ao estúdio. Ela e seu par de olhos marejados.
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Bookaholics
General FictionVárias pessoas com algo em comum: o hábito da leitura. Mais que um hábito, um vício. Um convite as uniu. O que as separou permanece em mistério. Bookaholics - você está pronto?