Parte 4 - homenum revelio

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A luz amarela do poste não era páreo para o esplendor da lua, que brilhava sobre o capô do carro, parado na rua. Na janela, uma moça de saia se inclinou para encostar a boca em outra boca, do rapaz ao volante. Trocaram carícias verbais sem som, apenas movimentando os lábios, enquanto se distanciavam um do outro. Segurou a gargalhada quando tropeçou no meio-fio. Depois de vários goles de vodka e cerveja, o corpo já não se equilibrava tão bem. Mas o torpor, aquela sensação de bem estar que ela costuma chamar de brisa, concedia a ela uma certa licença para causar, sem culpa, sem dor.

A madrugada avançava na escuridão daquela noite que já era dia. Já passava das 3 da manhã, mas ela estava elétrica. Sentou na cama, olhando para os livros jogados,  computador ligado, a pilha de livros na cabeceira. Sentiu aquela sensação de coisa boa, talvez ainda a brisa. Mas não queria dormir. A noite foi incrível, desde o papo no barzinho, depois o show, os amassos, a troca de energia. Fazia muito tempo que não se sentia tão bem com outra pessoa. Estaria apaixonada? Talvez, respondeu para si, escancarando o sorriso na cara. Na parede,  um Heath Leadger de cara pintada retribuía o sorriso, tendo Gotham como fundo. Mandou um beijo para o poster, se esticando, lânguida na cama. Alisou o ventre, tirou a saia e foi para o banheiro. Um banho, talvez, cortasse o barato e a fizesse relaxar. E sonhar, quem sabe. Era o que mais queria, dormir e reviver tudo de novo.

No chuveiro, a água quente despencou sobre seu corpo, percorrendo as curvas, saliências, concavidades. Penetrando em todos os lugares, feito um ritual de purificação. O sabonete deslizou nos braços, pernas, ventre, seios, que ostentavam bicos duros, o corpo falando sem dizer uma palavra. Subitamente, o corpo todo arrepiou. A água ficou fria. A luz, apagou. Conseguiu pegar a toalha, com a ajuda do brilho da lua, que mandou um raio pelo basculante do banheiro. Enxugou um pouco o corpo e se deitou na cama, enrolada na toalha. Com a ajuda do celular, iluminou a gaveta da cozinha.  Encontrou a vela, guardada para situações de emergência, no fundo da gaveta. O brilho amarelado e tremulante inundou o aposento com a fraca luz. O problema , agora, além da falta de sono era a falta do que fazer. A TV, que dava sono, era o artifício que usaria após o banho. No quarto, colocou a vela na cabeceira e pegou um livro. Pegou o livro que estava no topo da pilha. 

—O enigma do príncipe? Oxe, tô lembrada de pegar esse livro não...—Exclamou sozinha. Costumava falar consigo quando estava nervosa. E ver um livro de Harry Potter fora do seu lugar, na estante, causava uma sensação bem desagradável. Passou meio minuto em silêncio, olhando pra capa do livro.  Depois soltou uma risada reprimida, seguida de mais uma fala solitária:

  — Carmita, Carminha, Carmencita! Bebeu Absinto, foi? Deixe de besteira e vá caçar coisa pra ocupar a mente, que  dona Dulce (que Deus a tenha) já dizia: mente vazia, oficina do diabo!

E pegou o livro, abrindo aleatoriamente. Na página sessenta e seis, Harry, Hermione e Hagrid estavam sentados, lado a lado, num dos bancos da Sorveteria Florean Fortscue. Olhavam para o nada e seus rostos estavam desprovidos de qualquer emoção. Num piscar de olhos, o livro não estava mas nas mãos da moça. Ao invés de toalha, um vestido branco, de manga bufante. No pescoço, um colar de contas. O trio agora estava sentado em sua frente. Seus lábios se abriram para pronunciar algo, mas antes que ela o fizesse, Harry esticou os braços, exclamando:

  — Wingardium Leviosa!

Um envelope pardo flutuou, passando ao redor de Carmen por três vezes, antes de se abrir sozinho, liberando uma luz intensa, que fez com que os quatro fechassem os olhos. Quando a moça deu por si, estava de novo em sua cama. Na página 66, não havia texto, mas o rosto do bruxinho numa expressão do horror que jamais vira antes. Em sua cama, o envelope brilhava, emanando um raio que formou uma palavra no teto do quarto.

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Uma rajada de vento invadiu o quarto, fazendo a janela bater e as cortinas se desfraldarem feito bandeiras. O livro, folheado pelo vento, parou em uma página. Uma página inteira com apenas uma frase, que a moça pronunciou em voz alta:

    — Homenum Revelio!  

Antes de desabar na cama, ela ainda viu o vulto correr em direção a janela, ganhando a rua e sumindo na escuridão. Corria com a habilidade de um atleta, ou a agilidade de um demônio. E tinha a cabeça coberta por um capuz. Mas os olhos se encontraram. E ambos conseguiram enxergar dentro do outro.



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