Giselle, surpresa com toda aquela confusão, fingiu analisar cada contrato, em meio ao caos na sala de reuniões. Geraldo esmurrava a mesa, Lola e Carmen falavam ao mesmo tempo, Anne tentava acalmar Danni, que tomava anotações de tudo, compulsivamente. Valquíria não sabia o que fazer para controlar aquela situação. Por mais que quisesse, estava impotente, de mãos atadas diante dos fatos. Até Giselle se sentiu traída. Nunca imaginou que seus subordinados tivessem a capacidade de recorrer a trapaças para conseguir atingir suas metas. Não, ela não concordava com a máxima que prega que os fins justificam os meios. Digitou uma mensagem de texto para Dagoberto, pedindo explicações. Antes que a resposta aparecesse no display, o próprio empregado surgiu na sala, em carne e osso. A expressão no rosto dava indícios que algo mais estranho estava acontecendo. Um riso de canto de boca, carregado de cinismo, que parecia debochar de toda aquela situação. Giselle se preparava para pedir satisfações, quando a porta se abriu, dessa vez com violência.
—Gente! Mataram o Matheus! —gritou Luiza, com uma ficha médica nas mãos - Sedaram ele, depois tiraram vários órgãos! Isso aqui é uma armadilha!
Como a calmaria após a tormenta, o caos cedeu lugar a um estrondoso silêncio. Todos os olhos se voltaram para a menina franzina, ofegante e pálida. Dagoberto mantinha a expressão debochada no rosto, que agora exibia um sorriso após conferir a mensagem no celular:
Missão cumprida. Pacote saindo do heliporto em 20 minutos. Junte-se ao staff.
—Desculpem, mas não posso ficar para o final da festa. Aliás, recomendo que vocês deixem rápido isso aqui, se quiserem contar essa história pra alguém... — exclamou, indo em direção a porta. Mas antes que conseguisse tocar a maçaneta, foi puxado pelas calças por Geraldo.
—Ah, mas você não vai sair daqui assim não, meu amigo. Tá pensando o que? Faz a gente de besta e se manda? Tá de palhaçada, mané? - gritou Geraldo, enquanto virava o rapaz e o agarrava pelo colarinho.
—Ok! Eu explico tudo! — exclamou, demonstrando surpresa. - Só me solte para que eu mostre uma coisa aqui pra vocês. Ali, na gaveta da Giselle. Tenho a chave aqui, se você deixar eu posso...
— Pode nada! - Gritou Geraldo, ainda mais nervoso com a situação. Valquíria resolveu interceder.
—Geraldo, vamos ver o que esse idiota tem a mostrar. Mas eu abro a tal gaveta, ok? Cadê a chave dessa coisa?
—Tá aqui comigo! Se esse grandão me soltar, eu posso pegar aqui no meu bolso. — sussurrou Dagoberto, cada vez mais encolhido em frente ao grupo, que se juntara a Geraldo na intimidação.
—Gente, deixe ele entregar essa chave. Talvez haja alguma explicação pra isso tudo, não consigo acreditar nessa loucura! —implorou Giselle.
Valquíria assentiu com a cabeça. Geraldo largou o colarinho do produtor, dando antes um empurrão. Dagoberto deu dois passos para trás, se escorando na parede. Tateou um bolso, de onde tirou um lenço e secou o rosto. De outro bolso, tirou uma chave, que esticou na direção do grupo. Tina estendeu o braço para pegar o objeto. Feito um predador frente sua caça, o homem agarrou rapidamente o braço da moça, trazendo-a de encontro a seu corpo. Quando o grupo tentou reagir, o rapaz sacou uma pistola e encostou na cabeça da garota.
— Seguinte, seus merdas: eu vou sair dessa caralha aqui suave, tá certo? Tem um helicóptero me esperando pra gente vazar daqui. Temos ainda uma colheita na semana que vem na Argentina. Vocês escolhem. Se eu vazar de boa, não puxo o gatilho na cabeça da morena. Seria um desperdício, né? Ela tem rins tão preciosos... exclamou, acariciando o rosto da moça com o cano da pistola.
— Calma, Dagoberto...baixa essa arma! A gente só quer é sair daqui numa boa, vamos esquecer tudo isso, a gente nunca esteve aqui, isso nunca aconteceu. - exclamou Valquíria.
— Esquecer nada! Fui usada a troco de que? Vocês me fizeram montar essa estrutura toda para matar um rapaz e levar seus órgãos? Que loucura é essa? E o contrato com os europeus? —indagou Giselle, com o rosto vermelho de cólera.
—Ah, tolinha...E você acha que foi só um? Lembra dos ensaios? E dos testes de formato, tá lembrada? Pega as fitas. Você voltou a ver aquelas pessoas novamente? Deixa que eu respondo: hummmm... não! Foram mais de 30. Todos saudáveis, maioria não fumante, que bebiam eventualmente. Usamos várias iscas. A desse grupo foi livros. De outros, paixão por futebol. Por culinária. Por pornografia. O único que tive problemas de contrato foi essa porcaria de Bookaholics. Gente metida, que se acha por que leu meia dúzia de livros...
Enquanto Dagoberto declamava sua ode macabra, Tina estava longe. Entrou num transe quando sentiu o frio do metal encostando em sua pele. Em sua cabeça, uma frase repetia, num ciclo sem fim: "crescer significa mudar e mudar envolve riscos, uma passagem do desconhecido para o desconhecido". O trecho de A Cabana que se abriu na faculdade, quando ela recebeu o convite. Então abriu os olhos e não sentiu mais nenhum temor. Aproveitando o discurso de seu algoz, moveu lentamente seu cotovelo para frente, fazendo o movimento contrário com toda força. Desnorteado com o golpe, o rapaz perdeu o controle, arcando o corpo pra frente e soltando a moça. Na confusão, Analu puxou Tina e Lola apanhou a arma, antes mesmo que ela batesse no chão.
— De joelhos! - ela gritou, apontando a arma para a cabeça do rapaz. - Parece que o jogo virou, não é mesmo?
—Ah, você nem imagina o quanto.—ele respondeu, dando uma rasteira na moça, que bateu com cabeça na parede, antes de cair. Nesse ínterim, o dedo puxou o gatilho de uma arma sem direção, disparando uma bala que foi de encontro a um peito, rompendo tecidos, músculos e órgãos internos, se alojando lentamente entre duas costelas. O barulho fez com que todos ficassem imóveis, olhos arregalados, rostos se encarando mutuamente. Quando uma mancha vermelha se formou no paletó do produtor, ele se encostou na parede, estendendo o braço suplicando ajuda, enquanto todos corriam daquele lugar. Dez segundo depois estava sozinho, suando frio e respirando lentamente. Sua vista já estava turva quando viu um vulto se aproximando. Um enfermeiro, que encostou dois dedos na jugular. Sentindo a fraca pulsação, chamou alguém que o esperava no corredor.
— Olha, tem esse aqui, que tá quase indo embora. Dá pra aproveitar?
— Ah, acho que esse só as córneas. Vamos levar.
Quinze minutos depois, um helicóptero decolou dali, levando várias caixas de isopor repletas de encomendas valiosas. Pouco depois, as chamas começaram a devorar o estúdio e a clínica clandestina. De cima, se podia ver dois grupos, indo em direções opostas, deixando aquilo tudo para trás. Os dois grupos, agora divididos, contemplaram a explosão que clareou o começo da noite.
E cada um tomou seu rumo, sem olhar para trás.
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Bookaholics
General FictionVárias pessoas com algo em comum: o hábito da leitura. Mais que um hábito, um vício. Um convite as uniu. O que as separou permanece em mistério. Bookaholics - você está pronto?