Roniel Felipe
Venha comemorar a virada do ano no Tilico's American Bar. Incrível show com Wal da Sanfona, o tatu-bola do agreste e seu famoso acordeom que chora mais que homem chifrudo com dor de cotovelo. Se achegue para prestigiar o grande mito do xaxado, cujo sucesso ecoa até as bandas do Recôncavo Baiano. No intervalo do espetáculo haverá sorteio de panelas de pressão, garrafas de caninha e um burrico noviço. É a partir de zero hora. Traga sua família. E pode até trazer a inhaca da sua sogra. Réveillon com estilo é no Tilico's" — anunciava a gravação reproduzida por um alto-falante, posicionado estrategicamente na traseira de uma carroça.
O veículo puxado com o esforço hercúleo de um burro velho, que estava longe de ter a força do animal anunciado no reclame (que possuía um cômico efeito de eco na última palavra), fazia um bafafá danado na principal avenida de Parari, pequena cidade paraibana, dotada da mais pura quietude.
Essa seria uma cena comum, visto que se tratava de uma tradição para os pararienses, acostumados a ter como única opção de festa de virada de ano a bodega do Tilico, onde o rala-coxa comia solto até mesmo após o raiar do sol do primeiro dia de janeiro. Ao cidadão pacato não chegado ao mexe-mexe, não restavam muitas opções de lazer. A primeira era passar o réveillon em casa, provavelmente duelando com a palha de aço que enfeitava as antenas de TV em busca de um sinal decente, o que era bastante complicado em Parari no meio da década de 1990.
Aliás, a caixa da diversão era uma realidade para apenas três famílias pararienses, sendo que uma delas, a do prefeito Lindomar dos Anjos, o popular Lindão, estava ausente naquele fim de ano. O gerente de Parari e sua parentela haviam viajado para Salvador.
Quem também não era chegado na bagunça costumava rumar para a Paróquia de São José do Parari, a igreja da cidade, onde cristãos se reuniam para rezar terços diversos. Havia o dos homens, das mulheres e até mesmo os terços das crianças e, apesar da distinção das rezas, o clamor ecoava em uníssono por dias chuvosos. A chuva era raridade por aquelas bandas.
Manter-se desmazelado em casa era a última opção, mas, desta vez, para o abalo de Tilico, que reinava absoluto como o promotor-mor de festas de Parari, um concorrente no mundo do show business havia dado as caras, alvoroçando a calma realidade daquele povoado habituado a navegar os mares do marasmo.
"Réveillon é no Clube das Delícias, onde tudo tem um gosto especial. Venha começar o ano com o pé direito. Quem chegar antes da meia-noite ganha uma dose da branquinha. É por conta da casa. Mulheres lindas, ambiente familiar. Show da virada com Raymundo 'The Ray' Aguiar, o Jimi Hendrix do agreste, o nego que toca guitarra com a língua, aquele que botou o sete peles para correr. Sensacional apresentação de forrock, a última sensação nas paradas musicais de todo o nordeste" — respondia do lado oposto o alto-falante postado sobre outra carroça publicitária, esta puxada por um jeguezinho descarnado, que marchava lentamente em sentido contrário ao puxado pelo burrinho acinzentado.
Além da inédita dupla opção de lazer, o outro assunto que não saía da boca dos habitantes da cidade — que não chegavam a sete centenas —, era a profecia de Dona Sebastiana. Próxima dos três dígitos de idade, a velhota parecia ter sido banhada em leite de bezerro durante sua longínqua infância, já que a "Vó Tiana de Deus", como era conhecida, possuía uma vivacidade fora do comum.
Mirrada e com dificuldades para andar, a anciã, que os sarristas de Parari diziam ter tido um caloroso caso de amor com Matusalém, pulava da cama bem cedo. Sua rotina era simplória e não diferia da vida dos seus conterrâneos. Ela levava as mãos envelhecidas a uma bacia de alumínio (também demarcada pelo tempo) e molhava o rosto.
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Mostra Ecos 5ª edição: Brasil
Historia CortaÉ difícil definir o que é ser brasileiro. Alguns poetas transformaram o Brasil em uma aquarela, da qual a realidade destaca o vermelho, de sangue e de paixão.