PEDRAS QUE CANTAM

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VESimeoni

V. E. Simeoni


Eu sei o quanto você adora esse retrato, então pensei que seria o presente perfeito de despedida. Talvez seja meio fúnebre pensar assim, mas sejamos sinceros, ninguém é eterno. Deixo também esse bilhete para que você leia quando tiver idade o suficiente para entender, até lá eu não estarei mais aqui.

Quando me lembro dos dias em que eu era o garoto de calças curtas da moldura, não consigo deixar de sentir uma pontinha de saudade. Principalmente da moça que aparece ao meu lado, minha irmã Clara. Mas não é sobre isso que quero falar, na verdade quero te contar sobre o homem que pintou esse retrato. Mesmo nos dias de hoje o sangue me gela cada vez que penso nele...

Minha história começa no verão de 1926, época que marcava o início do Festival do Cacau na cidadezinha de Novo Horizonte. Festas assim atraem muitos forasteiros que chegam com suas carteiras gordas e nenhuma noção de como a banda toca por esses lados. Era com isso que eu contava quando fui ao porto, afinal, quem não quer uma alma caridosa que indique os melhores lugares ou quem sabe dê uma ajudinha com a bagagem? Naquela época me chamavam de trombadinha, hoje eu seria um guia turístico.

Assim que a chalana ancorou, marinheiros posicionaram uma rampa para que os passageiros desembarcassem. A primeira a descer foi uma freira de bochechas rosadas e logo uma fila se formou atrás dela. Enquanto eu cuidava da minha vida, um cara que parecia ser o imediato começou a gritar com os marinheiros e, mais rápido do que uma fagulha consegue queimar uma carga de pólvora, eles montaram outra rampa pela qual saíram uma dúzia de carregadores com malas e caixotes. Bem menos apressado, um homem de ombros largos e chapéu de vaqueiro foi o último a desembarcar pela rampa improvisada. Ele trocou duas palavras com um dos carregadores e acendeu um cigarro. Quem quer que fosse, devia ser alguém importante, só alguém importante causaria tanta comoção.

"Ocê perdeu alguma coisa pivete?", rosnou ao perceber que estava sendo observado.

Como não gosto de abusar da boa vontade dos outros, principalmente de quem tem o dobro do meu tamanho, dei um sorriso amarelo e tratei de sumir de vista. É claro que ninguém se orgulha de ter de sair com o rabo entre as pernas, mas tinha outra coisa me incomodando. Algo naquele sujeito era estranhamente familiar, só não sabia o quê. Fiquei tão perdido nos meus pensamentos que mal notei o idiota parado no meio do caminho até esbarrar nele e cair de bunda no chão.

"Oah..." ele girou a cabeça surpreso. "Tudo bem aí?"

O terno engomadinho e cabelo loiro cautelosamente penteado para trás praticamente gritavam "almofadinha da cidade grande".

"Desculpa senhor..."

"Você precisa ter cuidado", me ajudou a levantar. "Juro que nem te vi chegando."

Ele carregava uma maleta pequena com as bordas gastas, foi aí que lembrei que não tinha ganhando nenhum trocado ainda. O tal sujeito não parecia grande coisa, mas quando a Dona Sorte te estende a mão é melhor não se desfazer dela.

"Não querendo ser intrometido, mas o senhor veio na chalana, não é?"

Ele fez que sim com a cabeça.

"Já tem onde ficar?"

"Bem, um dos passageiros recomendou um Hotel chamado Bamerindus", ele coçou a cabeça. "Por que a pergunta?"

"Ah você não vai querer ficar lá, a comida é ruim e os quartos são caros", mentira. "Sem falar que a dona é uma velha rabugenta", essa parte era verdade.

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