A TRAÇA

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Alef


O mundo era gigante visto lá de baixo, com formas e tamanhos desproporcionais. Filomena andava tranquilamente pelos becos, vielas e ruas de São Paulo. Seu lugar predileto era a biblioteca Mário de Andrade, considerava seu habitat. Conhecia cada centímetro daquele local que dizia ser o céu das traças. Comida a vontade e de qualidade, e ainda um lugar quentinho para digeri-la.

Em uma manhã nebulosa de um sábado qualquer, Filomena saiu escondida de uma luminária desligada do hall da biblioteca e seguiu discretamente ao local onde ficavam os livros.

No caminho acabou se perguntando porque a biblioteca era pouco frequentada. Via poucos humanos ali.

- Será que eles são loucos? - Pensou ela.

Ao chegar a 50 metros do tesouro de Filomena, ouviu-se uma conversa:

- Se continuar assim, teremos que fechar. Está vendo esse movimento?

- É verdade, mas aqui é assim mesmo.

Filomena espiava discretamente para que não fosse percebida e, consequentemente, morta. Conhecia histórias de traças que foram dominadas pela curiosidade e se mostraram aos humanos, que com suas mãos gigantes e pesadas descerem um belo tabefe nelas. Essas histórias eram comuns, tanto que um parente de Filomena havia morrido há algumas semanas dessa mesma forma. A traça ficou pensativa com a conversa das duas senhoras que passavam no corredor, mas seguiu em direção ao seu mundo mágico.

Virando à direita, passou pela pequena fresta de uma porta que estava sendo pouco a pouco comida por cupins e entrou com maestria no seu paraíso. Seus olhos brilharam, sua respiração ficou fraca e as sensações se intensificaram. Filomena foi com sede ao pote como se fosse uma criança em uma barraca de algodão-doce. Correu seus olhos com cautela pelas lombadas dos livros, tentando escolher suas próximas vítimas. Condenou praticamente uma estante inteira, que serviria para alimentá-la durante alguns anos. Sem pudor, sem misericórdia e com o olhar sedento de um assassino, Filomena começou a devorar seu tesouro sagrado. Após algumas horas, a tracinha, com olhar satisfeito, foi até um canto úmido próximo ao banheiro feminino para descansar de sua digestão. Quando deu por si, estava ouvindo uma conversa de humanos:

- Mais um livro danificado Dani.

- Mas espera, esse não é aquele que fizeram resenha em um jornal?

- Que nada! Esse é um daqueles, nem fará falta.

E as duas saíram com olhares resignados rumo ao salão próximo. Após a conversa, Filomena começou a se sentir satisfeita em saber que estava fazendo um trabalho agradável para os humanos e se sentiu importante.

- Olha só e depois ainda querem nos matar. - Pensou a traça esfomeada.

O tempo passa e não perdoa. O movimento da biblioteca, que já era baixo até aquele momento, diminuiu por completo. O governador de São Paulo queria que o espaço sumisse, e que construíssem um novo empreendimento naquele local. As conversas dos bibliotecários eram desanimadoras. A tracinha Filomena nessa época já estava idosa, mas, ainda assim, consumia seus livros e se sentia no direito de julgar o que uma pessoa poderia ler ou não. Filomena, em um dos seus passeios pela biblioteca, se escondeu em um sofá desgastado pelo tempo e ouviu a conversa de duas senhoras que falavam sobre como seria bom um shopping nesse local horrível e desorganizado. Acreditavam que bibliotecas não serviam mais para nada e que a tecnologia estava aqui para provar isso. Estarrecida, a tracinha saiu furtivamente e foi para a rua dar um de seus passeios filosóficos. O pensamento não saia da cabeça do pobre inseto por achar que o seu paraíso seria substituído por um local barulhento, consumista e inabitável do ponto de vista de uma traça. O tempo passava e a tristeza a consumia como um câncer. Até que seu amigo Frederico, mais conhecido como Fred Lesmeludo, uma lesma que segundo amigos mais próximos de Filomena teria o dobro de idade de uma cigarra adulta, apareceu. Com seu olhar de criança levada, Fred perguntou o que tanto deixava sua amiga triste. Filomena explicou a situação para seu amigo, que ouviu quieto. Após ouvir toda a explanação, Lesmeludo endireitou seus óculos e começou a falar:

- Filó, calma! Eu sei que é difícil entender essa situação. Mas saiba que tudo tem um fim, mesmo um local como a biblioteca. Eu sei que lá é seu paraíso e sei também que você adora punir os livros e seus autores.

- Mas... E agora o que fazer?

- Oras, o que você sabe fazer de melhor!

Com um sorriso franco, Fred se despediu de sua amiga e seguiu seu caminho como o vento o dele.

Os meses passaram e como era esperado a biblioteca foi fechada. Filó se sentiu ressentida por seu pequeno lugar predileto ser fechado. A equipe de bibliotecários acabou por descobrir que diversos livros de filosofia estavam danificados e logo perceberam que eram o resultado do abandono mais o desuso, aliado às traças.

Filó assistiu atentamente à implosão do seu lugar preferido. Virou as costas e seguiu em frente até um próximo paraíso.

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