Bree

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Eu costumava pensar que meu nome parecia com o vento. Que soava leve como a brisa em uma tarde de verão, que era como uma canção de ninar, como o primeiro dia de férias, como um sorriso casual, como a primeira estrela ao anoitecer.

Descobri pouco depois que na verdade meu nome era a metade de algo. Eu era uma metade... Um esboço que o desenhista tinha esquecido de terminar, uma frase incompleta na boca de um poeta, uma nota dissonante, um sonho do qual ninguém consegue se lembrar.

Quando eu era pequena passava horas atrás dos meus pais perguntando que significado tinha. Era Briana? Britany? Significava primavera? Entardecer? Rosas?

Demorei muito pra entender que eles não se importavam. Talvez minha mãe tivesse escutado em alguma de suas viagens por países distantes, talvez tivesse encontrado em um biscoito da sorte, talvez fosse simplesmente uma palavra ambígua que poderia ter milhões de significados... Ou poderia não significasse nada em absoluto.

Às vezes eu aposto pela segunda opção.

Segundo o dicionário fraude significa: qualquer ato ardiloso, enganoso, de má fé, com intuito de lesar outrem ou de não cumprir determinado dever.

Eu tinha escutado essa palavra pela primeira vez aos onze anos quando vi meu pai ser arrastado de casa por policiais fardados enquanto minha mãe desmaiava no sofá felpudo da sala. Desde então, essa palavra me persegue aonde quer que eu vá. Talvez a devesse tomar como nome já que ela sim tinha um significado completo.

Não era uma palavra imprecisa. Ela não dava sinal a dúvidas.

Essa palavra tinha mudado muitas coisas na minha vida...

                                                                                 * ******** 

Corri sentindo que o tempo se esgotava enquanto dobrava o pequeno caminho de terra que rodeava a pista de corrida e as arquibancadas da escola. A ESA, Escola Santa Ana, se parecia muitas vezes a um labirinto, com seus corredores extensos e escuros e seus muros construídos no século XVIII.

Era oportuno pra mim na maioria das vezes.

Não hoje.

Hoje eu estava atrasada e esse era meu último aviso.

Passei escorregando, sentindo a mochila pesar nos meus ombros me impedindo de ser mais rápida enquanto escutava os passos já tão conhecidos atrás de mim.

Quando eu era menor, achei que talvez pudesse ser escritora. Tinha fascínio pelas palavras e achei que elas, de certa forma, também tinham fascínio por mim. Elas me perseguiam, brotavam quando eu estava no carro dos meus pais, quando estava no meio de um dever de matemática ou quando estava sentada na varanda, observando as pessoas caminharem lá fora. Nunca achei que seria melhor corredora que escritora. Eu era das que escreviam textos para fugir das aulas de educação física.

Mas agora eu tinha aprendido a correr.

Era melhor nisso do que era com as palavras.

Talvez elas tivessem me abandonado também.

Eu já não tinha muito tempo pra pensar nisso.

Vi a porta principal do prédio da escola e intensifiquei meus passos sentindo como meus pés batiam pesados no chão e levantavam poeira deixando minhas pernas da cor da terra avermelhada que rodeava a pista de corrida. Não ousei parar para limpar e não ousei olhar pra trás. Sabia que estavam perto.

Alguns passos mais e eu seria livre por algumas horas.

Dobrei derrapando perto do fim da arquibancada e senti minha cintura chocar com o metal do último assento lateral. Tinha passado perto demais... Grande erro.

Mordi os lábios contendo o gemido de dor enquanto me desequilibrava e caía.

Os passos atrás de mim se intensificaram e logo cessaram abruptamente. Aproximaram-se tanto que pude ver a cor de cada tênis como se fosse uma rede fechando-se ao meu redor. Estava rodeada.

—Ohh ela caiu... —Senti que minha mochila era arrancada do meu ombro enquanto eu tentava levantar sentindo o joelho latejar e constatando os arranhões nas pernas e na palma da mão por tentar evitar a queda.

—Você deve estar treinando nas horas vagas. — Uma segunda voz me empurrou de novo ao piso enquanto eu via o conteúdo da minha mochila ser jogado ao meu redor como material descartável depois da coleta de reciclagem. — Que pena que obviamente ainda seja uma princesinha fraca e insignificante. — Completou jogando finalmente a mochila vazia do meu lado enquanto se abaixava para me observar. — O que foi? Já não te assustamos? Por que não está chorando? Já não pode ir contar pro seu papai golpista o quão terrível somos com você?

Limitei-me a juntar minhas coisas do chão e guardar na mochila enquanto recebia minha pré condena, minha própria consciência, por chegar atrasada na classe. Esse era meu último aviso do ano. Eu teria que inventar uma nova desculpa dessa vez.

—Vamos Judy. — O tênis rosa chutou meu caderno enquanto se afastava com suas outras duas mosqueteiras. — Antes que ela chame a zeladora como um bebê chorão e tenhamos que dar explicações na diretoria.

Observei enquanto minha rede imaginária de tênis multicolor desaparecia do meu campo de visão e tentei limpar a terra avermelhada da saia de prega e da camisa branca do meu uniforme, mas como se fosse uma epidemia, a terra tinha se espalhado mais pela minha roupa e de repente, eu era um caos feito de terra e suor.

Levantei-me com dificuldade enquanto observava os arranhões no joelho e na perna e imaginava se deveria aparecer na aula assim antes de me limpar pra explicar o meu atraso (mesmo que minha imaginação estivesse me abandonando agora mesmo), ou se deveria correr pro banheiro e tentar limpar aquele desastre.

Foi só quando terminei de fechar a mochila e colocá-la de volta no ombro que o vi.

Observava-me como se eu fosse uma atração tediosa previa ao show principal. Encarou a catástrofe na qual eu havia me transformado por fora e imaginei se o sorriso sombrio que se formou em seus lábios eram porque ele sabia que eu era um desastre ainda maior por dentro.

Meus olhos queimaram enquanto eu tragava as lágrimas e seguia meu caminho desejando haver caído em qualquer outra parte daquele labirinto. Qualquer outro lugar onde ele não pudesse me ver.

Da mesma forma em que por uma fração de segundos eu me havia transformado em um pequeno entretenimento, ele perdeu o interesse em mim e desceu da arquibancada caminhando em outra direção.

Segui meu caminho enquanto tentava entender por que ele era única coisa inteira que eu tinha na vida enquanto todo o resto era metade.

Enquanto nem mesmo meu nome estava completo.


Bree  (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora