Prefácio

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Com a idade, a pessoa retorna cada vez mais ao passado. Para minha surpresa, descubro agora que jamais o deixei. Após alguns anos voltei a ler meu diário - com cuidado, do começo ao fim - com um pouquinho de nostalgia, admito, e em muitas partes com imensa emoção.
       Não sei como começar a escrever um prefácio para meu diário, ou por que deveria fazer isso. O essencial foi registrado há mais de sessenta anos. Anotei minhas experiências e pensamentos, primeiro em cadernos escolares, depois em folhas soltas de papel. A redação é infantil e o estilo, prolixo, ingênuo. Ainda assim, é um retrato fiel do tempo em que a minha geração viveu, cresceu e morreu. Muito já está escrito, muitas coisas foram esquecidas, por vezes algumas questões foram deliberadamente suprimidas e distorcidas. Eu gosto de arrumação e não quero deixar uma bagunça atrás de mim. Já é hora de pôr as minhas coisas em ordem.
       No decorrer dos anos, um grande número de documentos se acumulou. Não gosto de ficar
percorrendo a papelada, de modo que a minha é um pouco caótica. Foi assim que me deparei com meu diário, posto de lado muitos anos atrás e quase esquecido no fundo da gaveta. É um maço de papéis amarelados, escritos a lápis, em alguns pontos impossíveis de ler. Eu acompanho os tempos; aprendi a usar o computador e, página por página, digitei e imprimi.
       Me peguei apagando coisas, abreviando sentenças longas, omitindo trechos, escolhendo palavras e expressões mais apropriadas. Alguns poderiam discordar, dizendo que é necessária uma edição profissional. No entanto, minhas experiências nesse sentido não são muito boas. Muitos artigos, programas de rádio e relatos já foram escritos sobre as minhas aventuras. É comum que intervenções editoriais mudem completamente o sentido, distorcendo ou falseando fatos reais. Receio que, com as mudanças, a autenticidade e a força da narrativa se percam. Que os leitores tratem este diário de forma tolerante e o aceitem pelo que ele é.
       Meu diário começa em Praga, em 1938; descreve a ocupação da Tchecoslováquia e as condições ali - basicamente as diretivas antijudaicas no Protetorado e a vida no gueto de Terezín. Antes da nossa deportação de Terezín para Auschwitz (setembro de 1944), dei o diário ao meu tio Josef Polák, que o pegou junto com meus desenhos e os guardou dentro de uma parede de tijolos num prédio, preservando-os. Logo após a guerra (1945-1946), terminei meu diário de Terezín e anotei tudo o que havia vivenciado em outros campos de concentração (Auschwitz, Freiberg e Mauthausen), onde não houve oportunidade de escrever.
       Registrei esses acontecimentos conforme ocorriam nas minhas lembranças, redigindo espontaneamente, rapidamente, sob a pressão das experiências que me inundavam. Escrevi em folhas de papel soltas, sem sequer numerar as páginas. Não me ocorreu conferir as datas - em muitos casos eu nem mesmo as anotei - e, em todo caso, naquela época os historiadores estavam apenas começando seus estudos. Publicações acadêmicas só apareceram muito mais tarde, depois de eu ter terminado as anotações.
      Ao preparar meu diário para publicação em forma de livro, não foi fácil colocar os
acontecimentos em ordem cronológica. Se não fui bem-sucedida, que meus leitores sejam
tolerantes. Não sou historiadora e esta não é uma obra acadêmica. Minha prioridade, o mais
fundamental para mim, eram os fatos e as experiências, e disso eu me recordo com bastante precisão até hoje.
      Fatos confiáveis podem ser encontrados na literatura especializada. Pelos livros de história, os estudantes descobrem que durante a Segunda Guerra Mundial pereceram seis milhões de judeus. Os números exatos foram calculados e preservados em bancos de dados. Tudo o que se precisa fazer é clicar no computador; as datas e os números surgirão.
      Cada número, porém, contém um destino humano, uma história. Meu diário é apenas uma
delas.
      Encerrei minhas anotações com nosso retorno a Praga em 1945 e as palavras "finalmente em casa". No entanto, não havia casa à qual retornar. Minha mãe e eu não tínhamos para onde ir; meu pai jamais voltou e nosso antigo apartamento fora ocupado. Eu tinha quinze anos e meio, e, acima de tudo, precisava recuperar anos de estudo perdidos. Começamos uma vida nova.

  Helga Weiss Praga, 2012 

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