Capítulo 6- A Fábrica

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Após ter deixado sua filha com o casal Thénardier, Fantine seguira viagem até

Montreuil-sur-Mer.

Partira de sua terra natal há dez anos. Ao voltar, encontrou-a em franco

progresso. A principal atividade industrial da cidade era fabricar o azeviche inglês e uma

imitação dos vidrilhos pretos da Alemanha. Vinha em decadência por causa do alto preço

das matérias-primas. Mas, há alguns anos, um desconhecido chegara à cidade. Tornou

lucrativa a fabricação de ambos os artigos, introduzindo a resina na fabricação, no lugar da

goma-laca, e a solda nos braceletes e nas pulseiras. Embora a aparência dos produtos

tenha sofrido pouca mudança, o preço de fabricação caiu bastante. As vendas

aumentaram e, com isso, também subiram os salários e os lucros. Em menos de três anos,

o inventor tornou-se rico. A cidade prosperou novamente.

Pouco se sabia sobre ele. Contava-se que chegara com pouco dinheiro no bolso,

não se sabia de onde. Seus trajes e o modo de falar eram de um simples operário. No dia

de sua chegada, houvera um incêndio na Prefeitura. Arriscando a própria vida, o homem

salvou duas crianças no meio das chamas. Eram os filhos do chefe de polícia. Devido a

esse ato de heroísmo, ninguém fez questão de ver sua identificação. Só depois souberam

que se chamava Madeleine.

Tinha cerca de cinqüenta anos, ar preocupado e boa índole. Seus lucros

cresceram tanto que, no segundo ano após sua chegada, fundou uma grande fábrica. Com

ele, a cidade prosperou. Só era intolerante em um aspecto. Exigia honestidade e pureza

de costumes de todos os funcionários. Dizia sempre:

— Seja um homem honesto! Seja uma moça honesta!

Não se preocupava com sua riqueza ou com seu conforto. Sabia-se que tinha

uma fortuna estimada em seiscentos e trinta mil francos, depositados com um banqueiro.

Mas já tinha gasto mais de um milhão para ajudar os pobres e a cidade. Equipou o

hospital. Fundou escolas e um asilo. Criou um fundo para auxiliar velhos e doentes e uma

farmácia gratuita. Praticava caridade às escondidas, muitas vezes deixando uma moeda

de ouro na casa dos pobres sem se identificar. Em 1819, o rei o nomeou prefeito da

cidade. Mas ele não aceitou. Mais tarde, quando seus produtos fizeram sucesso em uma

exposição industrial, o rei quis lhe oferecer a medalha de Cavaleiro da Legião de Honra.

Novamente, recusou. Finalmente, foi nomeado prefeito outra vez. Houve muita insistência

para que aceitasse, e não pôde recusar novamente.

Continuou simples como sempre. Vivia solitário. Às vezes passeava pelo campo

com uma espingarda para caçar. Nunca atingia um animal inofensivo. Mas, se atirava,

demonstrava pontaria infalível. Não se conheciam amigos ou parentes desse homem. Mas

quando, em 1821, os jornais noticiaram a morte do bispo de Digne, aos 82 anos, o senhor

Madeleine pôs luto. Imaginou-se que tinha algum parentesco com o santo bispo. Sempre

que via, também, um menino da Sabóia procurando chaminés para limpar, perguntava seu

nome e lhe dava algum dinheiro. No início, não faltaram comentários e calúnias sobre o

passado desse homem. Mais tarde, conquistou o respeito da população.

Mas, às vezes, ao caminhar por uma rua, percebia estar sendo observado.

Virava-se e via um homem alto, de casacão, chapéu na cabeça e uma bengala nas mãos.

Este acompanhava o senhor Madeleine com o olhar, pensando:

"Já vi esse homem em algum lugar! A mim, ele não engana!"

Era o inspetor de polícia Javert. Tinha nariz chato, lábios finos. Quando ria, o que

era raro, parecia um tigre. Tinha um apego estrito à lei. Mostrava-se implacável no seu

dever de policial. Seria capaz de denunciar o próprio pai ou a mãe. Já dera a entender a

conhecidos que investigara o passado do senhor Madeleine. Nunca encontrara nenhuma

pista para saber de onde viera ou o que fizera até chegar à cidade. O senhor Madeleine

percebia seu olhar fixo, mas não se importava. Só uma vez pareceu se impressionar.

Certa manhã, o senhor Madeleine passava por uma viela. Ouviu um barulho.

Caminhou até um grupo de gente, que cercava um velho caído embaixo das rodas de sua

carroça carregada. O cavalo, também caído, tinha as patas quebradas. O carroceiro era

um velho chamado Fauchelevent. Estava espremido entre as duas rodas, quase sem

poder respirar. Impossível tirá-lo de lá. Para livrar o velho da morte, só levantando a

carroça. Tinha chovido na véspera. No chão sem calçamento, a carroça afundava sobre o

peito do velho. Em pouco, estaria morto. O senhor Madeleine ofereceu:

— Ouçam! Embaixo da carroça ainda há espaço para um homem se agachar e

erguê-la com as costas. Se alguém fizer isso, dou dez moedas de ouro!

Ninguém se moveu.

— Não é falta de boa vontade — disse Javert. — É falta de força.

Em seguida, Javert continuou, sem tirar os olhos de Madeleine:

— Até hoje, só conheci um homem capaz de fazer isso. Era um forçado das galés.

— A carroça está me esmagando — gritou o velho Fauchelevent.

Madeleine encarou Javert. Sorriu, triste. Em seguida, entrou embaixo da carroça.

Apoiou os ombros. Fez um esforço brutal. Para espanto de todos, levantou a carroça o

suficiente para libertar o velho. Todos correram a ajudar.

O velho agradeceu-lhe de joelhos. Madeleine suava, rasgara a roupa e estava

sujo de lama.

Javert o encarava fixamente.

Fauchelevent foi para o hospital. No dia seguinte, recebeu algum dinheiro e um

recado de Madeleine: "Compro sua carroça e o cavalo". O velho carroceiro sabia que a

carroça estava inutilizada. O cavalo morrera. Ficou coxo de uma perna. Ainda graças à

influência de Madeleine, conseguiu o cargo de jardineiro em um convento de Paris.

Foi pouco depois desse fato que Madeleine aceitou tornar-se prefeito. Javert ficou

ainda mais agitado, como um cachorro que fareja um lobo vestido com as roupas de seu

dono.

O inspetor de polícia passou a evitar Madeleine e só falava com ele quando o

trabalho exigia.

Os Miseráveis victor hugoOnde histórias criam vida. Descubra agora