Capítulo 2Monsenhor Benvindo

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À tarde, o bispo de Digne, depois de passear pela cidade, voltara para casa e fora

para o quarto, onde ficaria trabalhando em um livro que estava escrevendo.

Charles-François Myriel, o bispo, também era conhecido como Monsenhor Benvindo. Era

um velhinho de 75 anos, de uma bondade e simplicidade cativantes. Filho de um nobre,

durante a Revolução Francesa (2) emigrara para a Itália. Na juventude, gostava da vida

social.

Mas, depois da Revolução, ao voltar à França, tornou-se padre. Seu amor pelos

semelhantes demonstrava profunda vocação religiosa. Ao ser nomeado bispo da pequena

cidade de Digne, espantou a todos quando se recusou a viver no suntuoso palácio

episcopal.

Ofereceu o palácio ao hospital. Foi morar com a irmã e uma criada fiel na casa

acanhada onde antes funcionava o hospital. Era um homem para quem os ensinamentos

cristãos de humildade e amor ao próximo não eram palavras ocas, mas normas de conduta

que lhe davam, aliás, grande satisfação. Vivia modestamente, destinando grande parte de

sua renda para os pobres. De sua família nobre, que a Revolução levara à ruína, sobravam

apenas uma concha para sopa e seis talheres de prata e dois castiçais também de prata.

Quando havia convidados para o jantar, Monsenhor Benvindo mandava acender os

castiçais em cima da lareira. Essas preciosidades ficavam guardadas em um armário no

quarto do bispo. Eram sua única vaidade. A qualquer hora do dia ou da noite, quem

quisesse entrar só precisava empurrar a porta, pois a porta da sala de jantar, que dava

para a praça da catedral, não tinha mais fechaduras nem trancas.

Naquela noite, ao sair do quarto para comer, o bispo ouviu a criada conversando

com a irmã dele. O assunto era bastante familiar ao dono da casa. A criada não se

conformava com o fato de a porta não ter trinco nem fechadura. Quando fora fazer

compras, soubera que um homem mal-encarado tinha chegado à cidade.

— Verdade? — surpreendeu-se o bispo.

A criada continuou, dramaticamente:

— Todos estão com medo de que alguma desgraça aconteça esta noite. Não

existem lanternas nas ruas para dar um pouco de luz! A polícia não funciona! Digo e repito,

e sua irmã concorda comigo, que...

— Eu não disse nada — interrompeu a irmã do bispo.

— O que meu irmão faz está bem-feito.

A criada prosseguiu, como se não tivesse ouvido nenhum protesto:

— Nós dizíamos que esta casa não oferece nenhuma segurança. Se o senhor

bispo me permitir, vou chamar o serralheiro para colocar de volta as fechaduras e os

ferrolhos. Esta porta, que qualquer um pode abrir, é um perigo! Além disso, o Monsenhor

manda entrar qualquer um que bata à porta, mesmo no meio da noite...

Os Miseráveis victor hugoOnde histórias criam vida. Descubra agora