Vista sua máscara

120 6 0
                                    


Vida na prisão também é cultura, ao menos é a ideia que estão vendendo por aqui. E não me refiro à cultura marginalizada, cultura do gueto ou do morro, falo de grandes filmes e encenações de peças do Romantismo, como todo refinado crítico aprovaria. Essa tarde reinauguraram a antiga sala de cinema, que estava em reformas há dois anos pelo que dizem. Nada mais do que um cômodo amplo, com cadeiras de plástico dispostas em fileiras ao mesmo nível, impedindo que os que se sentam atrás enxerguem muita coisa, um Datashow, uma caixa de som e uma lona branca completam a estrutura. Dois anos para isso... Ao menos pintaram a parede, e a projeção continha nitidez, embora seu início tenha demorado, visto que ninguém parecia ter entendimento da máquina e seu cabo. As mulheres riam com aquele espetáculo, as faces de indignação e dúvida foram motrizes de piadas por dias. O filme, de início, foi exibido em sua língua original, pelas queixas das detentas e sua resistência em manter silêncio e atentar-se a película, acabaram por colocar a versão dublada, causando alívio até nos funcionários que ali se encontravam. Nada ajudou, algumas mulheres dormiram, outras fofocaram, e o lento progredir de Eyes Wide Shut dispersou a plateia acostumada a dramas água com açúcar ou comédias escrachadas. Só voltaram a atenção a projeção nas cenas da grande orgia, perguntando-se da real existência de tal coisa, uma até se levantou e disse que já trabalhara em uma chácara onde encontros assim aconteciam. Revirei os olhos e sorri, presa ao filme e a alguns questionamentos. Que estava pensando o idealizador de tal projeto em reinaugurar o espaço com obra tão complexa? De certo não conhece o público em suas mãos, ou seja um jovem idealizador, ainda cercado de questões antropológicas. Estivesse presente e saberia pelo que pedem aquelas mulheres.

Bom, se este assunto introduzi é porque tenho pretensão de soar culta, ainda que não seja. Tampouco vi toda a cinematografia do diretor em questão, mas a do Tom Cruise eu conheço bem. O filme findava, assim como a tarde, e eu era conduzida a minha ala, alheia aos comentários despropositados e infantis das demais, acostumadas a um roteiro que mastigue toda e qualquer informação, sem nuances ou questões a serem digeridas. Eu também sou dessas, crescida em um mundo Disney, de romances rápidos e improváveis, filmes de ação desenfreada e sem qualquer preocupação com o roteiro. O que nos importa é o espetáculo visual, ou nos vermos representadas no drama, na moça que sofre, que ama. Talvez precise me livrar destes paradigmas também, e conhecer o idealizador do projeto já seria um bom rompante. Quanto ao que interessa, os créditos surgiram e Rafael não saía de minha mente, mas desta vez o convidava a permanecer ali, não refutando sua lembrança. Os personagens viviam um embate entre sonho e realidade, onde o surreal ganhava contornos e significados muito além do possível, ainda que não o torne um ato passável. Meus pensamentos ainda destoam, assim como minha comparação, e se Rafael culpa alguma tenha tido em meu desfortuno, e se eu tivesse permanecido com a ideia da vingança apenas em minha mente, corroendo-me, consumindo minha lucidez, e ainda assim teria sido uma decisão acertada. Quantas vezes imaginei-me com outros enquanto ainda o namorava, e acredito que ele também, principalmente no ano final do relacionamento. A distância nos permitia tais delírios, o desejo sexual contido, a monogamia a nos castrar e moldar. E Rafael partiu para a realidade, concretizando seus devaneios eróticos, traindo nosso consenso em carne, teria esta traição maior relevância do que aquelas imagens que eu criava em minha mente enquanto me masturbava? Ou nos sonhos em que não possuía total controle de minhas ações? Dizem que sim, há enorme diferença. Se não houvesse não estaria agora doente. Sua concreção causou a minha ruína, ou só o culpo como expiação de minha consciência? E se ele vírus algum tivesse contraído, seria sua traição menos deplorável? Existiria graus de perdão, de responsabilidade, de traições práticas ou ilusórias? Talvez não tenha entendido o filme, ou seja incapaz de trazer seus argumentos para minha vivência. Eu pude escolher entre só me deliciar com os planos da vingança e realizar a transmissão, eu pude escolher entre transmitir uma vez e dar-me por satisfeita ou continuar transando com vários, eu pude escolher quem merecia e quem não, quem era digno, homem, escória, pervertido, quem traía e quem amava e encontrava-se afoito em dúvidas. Quantos momentos de redenção suprimidos pelo rancor, pela desesperança, pela solidão de carregar aquele segredo. Rafael também pode escolher entre me trair ou ser fiel, entre seguir seus instintos animalescos ou portar-se como homem regrado, civilizado e cristão. Até em usar ou não preservativo ele teve uma escolha, mas o momento sempre vence, assim como a cabeça de baixo, o famoso impulso. Ele teve tempo para me contar, ele teve tempo de sair com outras e se acostumar a ideia de trair, ele teve oportunidade de, ao menos, sugerir o uso da camisinha em nossas transas a partir daquela traição. Ele podia, mas não o fez, era incapaz de encarar seus erros, de gerar questionamentos em minha cabeça, o que pensaria eu se ele insistisse pelo preservativo? Traição, certamente. E foi o que aconteceu. Qual minha parcela de culpa nisto tudo, se é que ela existe. E se o HCT não fosse uma doença incurável, e se fosse apenas uma gonorreia tratável? Que implicações teriam estas mudanças na minha forma de agir, nos meus atos passados? Estaria eu o odiando hoje em dia se ele tivesse me infectado com uma Neisseria, ou já teria o superado, ou pior, continuaria em seus braços, sempre desconfiada? Esta nem você é capaz de responder.

Partindo para o segundo questionamento, ou seria o terceiro? Deveria eu ter dado a minha jornada sexual algum esmero, ou simbolismo, e não apenas ter corrido de cama em cama, servindo de depósito ejaculatório sem grandes pretensões? Seria um crime mais louvável se carregasse estas características? Um ritual, um perfil de vítimas, mensagens ocultas, souvenires, um jogo de gato e rato com a polícia. Tivesse eu encontrado um grupo como aquele do filme e talvez já estivesse morta, ou os que carregam a minha cepa já chegariam ao milhar. Pessoas influentes, ricas, todas descobrindo-se HCT +, tendo de contar para a esposa suas peripécias, suas fantasias e orgias das quais participava. E talvez a madame contentasse-se em sofrer em silêncio com aquele mal conjugal, a ter sua imagem ligada a de uma portadora de doença venérea. Tivesse eu sido mais seleta, e me chamariam de Robin Hood dos tempos modernos.

Da próxima sugiro que passem uma comédia que use flatulência para arrancar risos da plateia, grata.

PredadoraOnde histórias criam vida. Descubra agora