QUANDO ASTRID DERRAMA SANGUE PELA PRIMEIRA VEZ

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O KIRIN ERA FEITO DA PRÓPRIA noite. Eu me agarrei às suas costas, incapaz de fazer muita coisa além de segurar no pelo frio e úmido enquanto ele corcoveava enlouquecidamente, balançando a cabeça na tentativa vã de me perfurar com o chifre. De perto, pude ver que ele não era nada invisível, apenas composto das cores da noite. Ainda assim, enquanto saltava em
uma luta silenciosa, com os cascos não fazendo qualquer som ao se chocarem com pedras, o mundo ao nosso redor piscava como uma miragem, a imagem de Giovanni se enevoando ao nos afastarmos. Será que ele conseguia me ver? Será que me ouviria se eu gritasse? Subi pelas costas da criatura e agarrei tufos da crina negra que escorregaram pelos meus dedos como grama úmida. Agora eu conseguia ouvi-lo respirar em lufadas quentes de ar, exalando decomposição e ferindo minhas narinas quando as inalei. Minha mão se fechou ao redor do chifre, quente e duro como um taco de beisebol em um dia de verão. Eu apertei. Eu
puxei. O kirin ficou louco, se contorcendo e saltando, pulando e me sacudindo. Consegui ouvir Phil gritar meu nome, consegui ver três imagens borradas no portão, mas não tive fôlego para gritar. Minhas mãos escorregaram do chifre e foram parar no focinho da criatura; enfiei os
dedos desesperadamente até sentir uma coisa mole debaixo do meu polegar. O olho. Eu me encolhi de horror, e o kirin corcoveou mais uma vez. A lua passou por mim balançando em arco, e caí no chão, com o braço parecendo pegar
fogo. Cobri a cabeça com as mãos, certa de que a qualquer segundo sentiria cascos esmagando
meu crânio. Alguma coisa quente pingou no meu rosto, e em seguida Phil estava ao meu lado,
me puxando para ficar sentada.
— Levante-se — sibilou ela. — Ele já foi.- Esfreguei a parte de trás da cabeça, onde tinha batido com força contra o piso de pedra.
Não havia cortes, mas com certeza haveria um galo amanhã.— Cara — disse Seth. — Você é algum tipo de acrobata? É melhor parar de dar saltos- mortais sem um chão acolchoado, hein?-
Quando afastei a mão, havia sangue escorrendo pelo meu braço. Fiquei olhando para ele, meio entorpecida.
— Você se machucou... — disse Phil, franzindo a testa. Olhei para além dela, para onde Giovanni estava, silencioso como um kirin.
— Aperte — disse ela.
Um rio de sangue descia do cotovelo até meu pulso, vindo de um corte profundo e ardido na parte interna de meu braço.
— Mas estou falando sério — disse Seth. — O que você achou que estava fazendo?
— O que era? — perguntou Phil, ignorando o acompanhante.
— Um kirin — sussurrei em resposta. — Tenho certeza.
— Nas ruas de Roma?-
Incapaz de atrair nossa atenção, Seth se virou para Giovanni.
— Por que ela foi pular de cima do muro?-  Giovanni negou com a cabeça sem saber responder, mas não tirou os olhos de mim.
— Não tenho... certeza. O modo como ela se moveu... Ela simplesmente desapareceu.
Phil ainda estava falando.
— Acho que, se pode haver coiotes no aeroporto de Los Angeles, pode haver kirins no centro de Roma...-
Eu me desvencilhei dela (de toda forma, o corte não era fundo) e fiquei de pé.
— Aquilo não foi uma ginástica olímpica. Tinha uma coisa ali.
— Uma coisa? — riu Seth. — Como o quê, um monstro? Você contou lendas demais para essa garota hoje, Jo. Agora ela está vendo górgonas e ciclopes.
— Ei — disse Phil, com a voz em tom perigoso. — Cuidado com o que fala. — Ela se virou para mim. — Vamos, Astrid. Vamos limpar isso.-
Giovanni ainda estava olhando, mas não deu um passo em minha direção. Nem perguntou se eu estava bem.
— Não podemos deixá-los sozinhos aqui — falei. — E se ele estiver perto?
Phil fechou os olhos, como uma médium doidona.
— Não está. Você não consegue perceber?- Não. Eu me sentia coberta de kirin. Cheia dele. O kirin cobria meu corpo como óleo, queimava no meu sangue. Apertei os braços sobre o peito e tremi.
— Hum, moças? — disse Seth. — Nós vamos embora. — Ele puxou o braço do amigo.
Giovanni deu alguns passos para trás, mas não se virou.
Eu queria dizer que não éramos esquisitas, que havia uma explicação racional para o queele presenciou, algo que não envolvia um unicórnio invisível. Mas para quê? Brandt não tinha acreditado na história do bode louco. Nem mesmo o encanto de Phil estava tendo muito efeito neles.
— Se cuidem. — Foi tudo que consegui dizer.
Giovanni pareceu que ia falar alguma coisa, mas Seth saiu andando, e ele só hesitou por um segundo antes de seguir o amigo.
— Babacas. — Phil bateu o pé no chão. — Odeio garotos! Num segundo estão com a língua enfiada na sua boca e, no seguinte, pulam fora. Espero que sejam comidos por unicórnios. Seria bem feito pra Seth por se divertir com a sua cara.
Observei as silhuetas deles desaparecerem na escuridão e prendi a respiração, mas se havia um unicórnio os seguindo, não consegui detectar.
— Bem, isso foi uma bosta. Que final horrível pra uma noite ótima, hein? — disse Phil.
— Uma noite ótima que começou com minha bolsa sendo roubada?
Phil repuxou os lábios.
— Ah, é. Bem, não há nada que possamos fazer agora. Vamos cuidar desse braço. Não consigo acreditar que você foi atrás dele! O que já sabe sobre matar unicórnios?-
Encostei o queixo no peito.
— Não sei por que fiz isso. Foi burrice. Eu nem sequer tinha uma arma. Mas ele apenas... me olhou. Ele ia comer Giovanni.
— Então achou que era melhor que ele comesse você em vez disso? — suspirou Phil, passando a mão pelo meu braço ferido e me guiando pelo pátio em direção à porta do
Claustro. — Sua mãe me mataria se soubesse que deixei você pular em cima de unicórnios na sua primeira semana aqui.
— Lilith te mataria se soubesse que você me levou pra sair com garotos.
— Verdade. — Phil sorriu. — Acho que é a maldição das mães solteiras. Elas têm medo da filha cair na mesma armadilha.- Não, Lilith queria garantir que eu ainda poderia ser caçadora. Olhei para meu braço.
Havia sangue seco sobre a pele, mas o ferimento parecia pouco mais do que um arranhão. Phil abriu as portas gigantescas, e entramos pé ante pé na rotunda. Era ainda mais apavorante à noite. Nenhuma luz brilhava nos mosaicos dourados, e o que eu conseguia distinguir de
“Bucéfalo” era um volume ameaçador e sem forma definida; um contorno do chifre; e aqueles dois olhos brilhantes e proeminentes.
— Se divertiram?
Nós duas pulamos. Uma luz se acendeu e pisquei para Cory, que apontou uma enorme lanterna para nós como se estivéssemos em um interrogatório. Neil estava ao lado dela, com os braços cruzados sobre o peito.
— Onde vocês duas estavam? — perguntou ele. Phil se empertigou.
— Nós saímos.
Cory apontou a luz da lanterna para meu braço.
— Deve ter sido uma noite e tanto.
— Havia um kirin... — comecei, mas Neil me interrompeu.
— Vocês não podem sair sem permissão. Imaginem minha aflição quando estava tentando mostrar o claustro para uma nova caçadora e os pais dela esta noite, mas acabei descobrindo que tinha perdido uma menor de idade sob minha supervisão.
— Qual é o problema? — perguntou Phil. — Eu a levei pra jantar. Sou prima dela. Posso fazer isso.
— A mãe de Astrid a colocou sob nossos cuidados, não sob os seus. Apesar de você não ser menor, eu não aprovo o fato de você estar aqui sem o conhecimento de seus pais. O que eu
sei é que você chegou sem convite e sem aviso e, no minuto seguinte, está desaparecendo com minhas caçadoras.
Suas caçadoras? — respondeu Phil. — O que te qualifica pra ser o responsável?
Neil ignorou a pergunta.
— Astrid, se lave e vá pro seu quarto. Philippa, me acompanhe até minha sala imediatamente.
Dei um passo à frente.
— Sem mim, ela não vai. — Ela havia me defendido de Seth, agora eu podia fazer o mesmo. — Phil não me forçou a ir a lugar algum. Se estamos encrencadas, estamos juntas. —
Qual era a pior coisa que ele podia fazer? Me expulsar? Manda ver!
Neil franziu a testa.
— Tudo bem. — Ele se virou e entrou batendo os pés na sala dele. Nós fomos atrás, e Cory nos seguiu até que Neil praticamente batesse a porta na cara dela.
— Me desculpem a bagunça — disse ele, em um tom que não trazia qualquer traço de desculpa verdadeira. A sala de Neil era cheia de livros e papéis, fotos de satélites e desenhos amarelados de unicórnios. Mas as paredes eram pintadas em um tom creme suave e não havia sinal de ossos. Ele transferiu uma pilha de pastas de cima de um banco para o chão e gesticulou para que
sentássemos. Tomamos nossos lugares, e Neil lentamente percorreu a extensão da escrivaninha até sentar-se na cadeira. A camisa dele estava amassada, o cabelo, desgrenhado,
e pensei estar vendo olheiras debaixo dos seus olhos. Senti uma pontada de culpa por tê-lo deixado preocupado a noite toda. Já trabalhei como babá vezes o suficiente para saber o
quanto é difícil lidar com pais que aparecerem quando você não está com tudo perfeitamente sob controle.
— Vou ouvir a explicação de vocês.
— Mas é isso — disse Phil. — Não temos nenhuma. Nós saímos. Nos divertimos. Até onde eu sei, essas coisas não são ilegais.
— Se você acredita nisso, por que não me informou? — Oops, ponto para o Neil. Mas Phil se saiu bem.
— Se tivéssemos perguntado, por que você teria dito não?
Ele apontou para o meu braço.
— Não é razão o suficiente pra você? Sua prima foi atacada por um unicórnio hoje. Uma caçadora sem treinamento corre perigo sempre que estiver do lado de fora. Vocês não
entendem? O potentia illicere... O unicórnio é atraído até a caçadora, sempre. E hoje, ele veio atrás dela.
— Peço licença pra discordar — respondeu Phil. — Pelo que sei, ela atacou ele.- Eu confirmei, para apoiá-la. E talvez agora não fosse o melhor momento para mencionar meu passaporte perdido.
— Pelo que você ouviu de quem?
— Do garoto com quem ela estava saindo.
Agora Neil ficou de pé.
— Você só pode estar brincando. Não só a retirou do Claustro sem minha permissão, mas também arrumou um encontro pra ela? — Ele negou com a cabeça sem acreditar. — Não tem
respeito pelo que estamos fazendo aqui?
— Não vejo como tenhamos posto qualquer coisa em risco. — Phil também ficou de pé.
— Não é permitido ter encontros. Isso vai contra todas as regras da Ordem.-
Phil riu.
— Por favor. Eu namoro há anos e ainda sou qualificada pra ser caçadora de unicórnios. O que você pensa de nós? Acabamos de conhecer esses caras!
— Então você também estava com alguém? — Ele cruzou os braços. — Essas questões não são negociáveis.-
Ela deu de ombros.
— É você quem está desesperado por caçadoras de unicórnio. Quantas estão vindo, seis?
Nove? Contra quantos unicórnios? — Ela sorriu. — Tudo aqui é negociável.
Ele se inclinou para a frente e sorriu do modo mais charmoso possível.
— Não isso. Suponho que você conheça essas regras.-
Eu gemi.
— Você não entende, Phil? Isso aqui não é uma colônia de férias. É uma escolha pra vida inteira. Se vamos ser caçadoras, é assim que vai ser. É o que vamos ser. Não seremos namoradas, nem esposas, nem mães...
Phil olhou para mim, atônita.
— Então era disso que tia Lilith estava falando. E você concordou com isso?-
Quais eram minhas opções? Talvez eu tivesse resistido com mais intensidade se sentisse que estava abrindo mão de alguma coisa. Mas depois de Brandt, não era como se eu ainda
tivesse muita chance com os caras da minha cidade. E as coisas com Giovanni não deram em nada, mesmo antes de o kirin aparecer. Talvez eu não levasse jeito para romance, independentemente da questão dos unicórnios.
— Isso é simplesmente ridículo! — gritou ela. — Como você espera que alguém se submeta a isso?
— Agora você entende por que estamos tendo tanta dificuldade — disse Neil. — O estigma histórico é uma carga difícil de se livrar. Metade das famílias existentes é descendente do lado feminino, uma população que raramente tinha descendentes antes de os unicórnios se tornarem extintos. Mesmo se estiverem cientes de sua herança, poucas apoiam.
A resistência era esperada.
— Então por que seguir as antigas regras? — perguntei. — Você está disposto a perder Philippa porque ela não quer desistir de todos os aspectos da vida pessoal para ser caçadora.
Está disposto a abrir mão de todas nós. Estou aqui porque minha mãe me obriga e porque, como você diz, sou menor de idade. Você está tentando recrutar mais caçadoras, mas só está dificultando as coisas pra si mesmo. Não seria melhor mudar as regras pra se adequar ao fato de que, hoje em dia, as mulheres são mais independentes?
— Com que objetivo? — perguntou Neil. — Perder tempo treinando garotas que vão nos largar assim que decidirem levar seus relacionamentos para o próximo nível?-
Eu não tinha resposta para isso.
— Entendo seu ponto de vista, acredite — disse Neil, sentando-se. — Me sinto muito mal por ser forçado a assumir a posição de cuidar de sua vida pessoal. Não é da minha conta. Mas havia uma razão pra Ordem da Leoa assumir o disfarce de convento, e não tinha nada a ver com o catolicismo. Ao tirar as caçadoras do mundo material, a ordem acabava com qualquer possibilidade de perdê-las para ele. — Ele gesticulou para Phil. — Você tem 19 anos; diz que
namora há vários; e, mesmo assim, ainda é... qualificada. Tem alguma ideia do quanto isso é raro para alguém dessa idade?
— Por que você não me chama logo de derrotada? — disse Phil.
Mas Neil não ia se deixar enrolar.
— Principalmente alguém tão atraente e cheia de energia como você. Pra ser completamente franco, se eu não tivesse visto você passar no teste do zhi com meus próprios
olhos, teria dificuldade em acreditar.- O olhar de surpresa nos nossos rostos o fez ruborizar, e ele contornou.— Você é a garota mais velha daqui, com uma diferença de vários anos.
— E o que a idade dela tem a ver? — perguntei. — Você acha que só porque ela é bonita, legal e divertida, deveria estar fazendo sexo?
— Não! — Neil passou a mão pelos cabelos. — Vocês não entendem? Eu não ligo. Não criei as regras, mas preciso segui-las. O jeito antigo funcionava.
— O jeito antigo — continuei —, foi desenvolvido em uma sociedade onde as mulheres não eram nada além de haveres.
— Nada além de quê? — Phil franziu a testa.
— Propriedades — explicou Neil, e se curvou na cadeira. — Eu sei. E, até certo ponto, concordo. Vejo os problemas inerentes de pedir que adolescentes assumam um compromisso pra vida toda. Mas nós não sabemos quanto tempo vai demorar até termos caçadoras prontas pra cumprir o dever. Antigamente, vocês eram treinadas desde a infância e continuariam
caçando até a terceira idade. Então, que prazo escolheremos? Quatro anos, como o serviço
militar? Trinta, como as virgens vestais da Roma antiga?
— Trinta! — Phil quase se engasgou. — Isso é a vida inteira.
Se não fôssemos mortas durante a primeira caçada. Sempre havia essa possibilidade.
Verifiquei o arranhão no meu braço, que tinha secado completamente. O que eu estava pensando quando pulei no kirin daquele jeito? Eu podia ter morrido hoje.
— Por que é você quem determina os termos? — perguntei. — Quem nomeia o don? Como isso funciona?
Neil parecia cansado.
— Normalmente, o antigo don ou um grupo de caçadoras experientes. Nesta situação, não tínhamos nenhuma das duas coisas, então assumi a posição.
Ainda bem que Lilith não sabia que o cargo de Neil tinha sido dado a ele por si mesmo, senão certamente minha mãe teria tentado tirá-lo dele.
— Mas talvez tenha sido um erro. Antes, quando éramos apenas Marten, Cornelia e eu, tudo parecia simples. Já na prática... talvez você esteja certa. O sistema antigo não vai mais funcionar. E talvez seja uma coisa que devamos todos discutir, juntos, como uma Ordem. Ninguém é dono de vocês; ninguém pode forçá-las a fazer isso. E admito: tenho odiado cada
minuto nessa função.- Ninguém pode me forçar a fazer isso? - Neil tinha mesmo trocado uma ideia com minha mãe?
Phil fez um gesto de negação com a cabeça.
— Se você odeia, então por que está aqui? Ninguém está te forçando.
— Depende de como você encara. — Ele apoia a cabeça nas mãos e fica em silêncio por um bom tempo. — Eu não devia contar isso. Nada disso. Mas vocês estão certas. O que me torna mais qualificado do que Philippa para ser o responsável aqui? Pelo menos, ela é caçadora. Os dons nunca foram caçadores, mas agora o tempo é outro.- Vi Phil erguer o queixo, mas eu ainda estava observando Neil. Ele não parecia em nada com o rabugento Cornelius Bartoli que trocava tantos e-mails ansiosos com minha mãe.
— Minha irmã — disse ele, ainda encolhido à escrivaninha —, era genealogista. Foi pelos registros dela que conseguimos encontrar a maioria das famílias. Ela achava que os unicórnios eram uma história de família interessante, úteis apenas por fornecerem um retrato detalhado e
uma série de registros que ela poderia usar pra estudar nossa linhagem. Ela nunca acreditou.
— Ele se endireitou na cadeira e nos olhou. — Um dia, uns seis meses atrás, ela estava no bosque com a filha, e elas foram atacadas por um bando de zhis. Minha irmã foi morta.
— Ah, meu Deus — sussurrou Phil. — Neil, lamento muito.- Mas eu estava tremendo tanto que não conseguia falar. Que nem Brandt. Que nem Brandt, a única diferença é que não havia ninguém lá para salvá-la.
— Quando as encontrei — disse ele —, os zhis estavam mortos. Cornelia tinha batido neles com um porrete até matá-los. Todos, menos um. Ela havia desmaiado, coberta de
ferimentos. O único animal que sobreviveu estava dormindo no colo dela.
Eu engoli em seco.
— Bonegrinder.
Não era surpreendente ela querer a zhi morta. E eu a tinha protegido. E Phil a tinha... acariciado.
Ele confirmou, parecendo infeliz.
— O unicórnio é atraído para a caçadora, sempre. — Depois de um tempo, ele prosseguiu.
— Cory não sabia de nada sobre isso, nada sobre as habilidades dela. Vocês não a reconheceriam na época. Ela mudou demais. Quando mexeu nas coisas da mãe, descobriu a existência de caçadoras, do Claustro, da Ordem. Acabou ficando obcecada. Foi Cory quem fez contato com Marten Jaeger, que fez contato com Lilith Llewelyn.-
Então não tinha sido Neil a escrever como Cornelius. Sempre fora Cory. Não era de surpreender que, pessoalmente, ele parecesse tão diferente daquele dos e-mails de Lilith.
— Precisávamos de um adulto pra ser o don, pra continuar a procurar novas caçadoras, então eu me juntei a ela. O que mais eu podia fazer? Sybil era minha irmã, e agora sou tudo
que a filha dela tem.
Phil esticou a mão e tocou o ombro dele.
— Neil — disse ela, baixinho.
— Você é uma fraude — falei. — Você e Cory nos trouxeram aqui sob alegações falsas. Não fazem a menor ideia de como nos transformar em caçadoras.
Neil contraiu o maxilar.
— Reunimos os registros que sobraram e estamos trabalhando dia e noite pra montar um programa. Tenho um arqueiro habilidoso que está vindo para ensiná-las como usar o arco e flecha; temos a Gordian Pharmaceuticals pra quaisquer outros recursos de que possamos precisar. Não, não temos experiência, ninguém mais tem. Mas sabemos mais sobre unicórnios do que qualquer pessoa viva.
— E — disse Phil, para dar apoio — tenho certeza de que as novas caçadoras podem ter registros familiares que podem ser de alguma ajuda. — Ela sorriu para ele, e eu senti vontade de gritar.
Fiquei de pé.
— É, vocês estão transbordando conhecimento. Vou ligar pra minha mãe e contar exatamente o que está acontecendo aqui.
Agora Phil se virou contra mim.
— Acha que vai fazer alguma diferença pra ela, Astrid? “Ah, claro, querida. Esqueça essa ideia de caçadora de unicórnios e volte pra casa.” Até parece. — Ela voltou a falar com Neil.
— Quero ajudar você. Passou por muita coisa sozinho. Mas precisa ser com direitos iguais.
Sou caçadora, é verdade, mas não vou me anular e ser... propriedade de ninguém, sei lá. Sou uma mulher adulta e tomo minhas próprias decisões.
— Combinado — disse Neil, e pareceu aliviado com isso.
Ela olhou para mim.
— E devíamos levar em conta os desejos das caçadoras menores de idade também. Não só Cory, mas todas. Não estou pregando o caos, mas é injusto impor regras com séculos de idade em situações nas quais não são mais aplicáveis. Sei que podemos pensar em alguma solução.-
Fiz um som de protesto, mas ela me ignorou e continuou a elaborar seu pequeno estratagema para Neil. Era demais. Eu tinha entrado em um avião por ordens de Lilith, desde
que cheguei só vinha ouvindo ordens de Cory. Não ia deixar que minha prima três anos mais velha mandasse em mim. Dei meia-volta e saí como um furacão da sala de Neil.
Phil me alcançou antes de eu chegar na metade da rotunda.
— Astrid, espere.
— Não! — Apertei o braço contra o peito e continuei andando. — Você deveria tornar toda essa experiência melhor, suportável! Mas agora está comprando a ideia. Eu queria que
você fosse filha da minha mãe e eu fosse filha do tio John! Assim, eu não precisaria estar aqui.
Ela me puxou para perto.
— Astroturf, pare com isso. Não faça assim. — Nos braços dela, a sensação era igual a de ser abraçada por Lilith. Ela era mais alta do que eu. Mais forte. Eu tentei me afastar, mas Phil
passava horas malhando e conseguia bater em uma bola de vôlei com tanta força que deixava marca na quadra. — Você não vê o quanto vai ser melhor?
— Não. Estou presa aqui de qualquer jeito.
— Mas não pra sempre. E não do jeito que eles querem. Pense bem. Você disse que Cory quer caçar unicórnios até que fiquem extintos. E, se sua mãe pudesse fazer as coisas como quer, ela trancaria você aqui e jogaria a chave fora. Posso não saber as mesmas palavras difíceis que você, posso não saber nada sobre caçar, mas consigo entender Neil. Ele não pode fazer isso sozinho. Precisa de nós, como caçadoras e como ajudantes. E precisamos que ele
esteja do nosso lado. Você não percebe? Trabalhe com o sistema. Não lute contra ele.
— Lutar contra os unicórnios? — debochei, me afastando e segurando o braço ferido. — Pra que da próxima vez eles me acertem em um lugar mais delicado? Podemos ser imunes ao veneno, mas ninguém é imune a um grande e afiado chifre entrando na barriga. Trinta centímetros pra direita e eu poderia ter morrido hoje. Brandt poderia ter morrido no bosque lá da nossa cidade. Sybil Bartoli? Morta. E ninguém aqui tem a menor ideia de como nos treinar, de como fazer com que estejamos em segurança.
Phil não tinha resposta para isso.
Apontei para a figura de Clothilde atrás de nós.
— Ela treinou a vida toda, mas ainda assim foi morta pelo karkadann. Caçadoras de unicórnios morrem, Phil. Não é um jogo. Você pode fazer todos os pactos que quiser pra que a
gente possa sair com garotos, ir pra faculdade, ir embora depois de um número determinado de anos de serviço, mas não muda o fato de que minha vida está em perigo aqui. Não quero fazer isso. Eu não sou uma guerreira.
— Mas hoje você...
— Hoje eu fiz uma loucura. Não vai acontecer de novo. — Parei de falar, me sentindo sem fôlego de repente.
Phil mordeu o lábio e me observou.
— Astrid, eu te amo tanto. E juro, juro mesmo, que quero a sua segurança e quero que seja feliz. E vou fazer o que for preciso pra que isso aconteça.
— Você vai me tirar daqui? — Ela não respondeu. — Não achei mesmo que fosse. Boa noite.
Fui para a escada e fiz uma careta ao esticar a mão para o corrimão e sentir o ferimento no meu braço repuxar com o movimento. Eu queria arrancar os pedaços de ossos das paredes.
Queria esmagar os que despontavam como protuberâncias pela alvenaria. No andar do alojamento, vi uma luz acesa debaixo da entrada de outro quarto, que devia pertencer à nova
caçadora. Olhei para os nomes na porta quando passei a caminho do banheiro, no final do
corredor. DORCAS E URSULA.
Só pode ser brincadeira.
Lavei e desinfetei o corte quase cicatrizado da melhor maneira que pude. Posso ser imune a veneno de alicórnio, mas quem sabe o tipo de germes que um unicórnio carrega? O lado positivo foi que consegui usar alguns dos itens de primeiros socorros que Lilith tinha colocado
na minha mala. Passei um curativo líquido e usei uma fileira surpreendentemente cuidadosa de
curativos adesivos para fechar o corte, considerando que os colei com apenas uma das mãos.
A luz estava apagada no quarto que eu e Cory dividíamos, e a coisa amontoada sobre a cama dela obviamente não tinha nada para me dizer. A luz da lua se refletia nos porta-retratos sobre a prateleira dela, as fotos da mãe, do cachorro, de uma época em que ela também era
normal.
Tentei ficar o mais em silêncio que pude ao entrar pé ante pé, trocar de roupa e subir na cama. Fiquei deitada sem me mover e respirei fundo, mas permaneci acordada. Phil tinha se
juntado a mim no Claustro, mas não estava do meu lado. Meu passaporte tinha sido roubado, então eu não podia fugir. E jamais veria Giovanni de novo. Minutos se passaram, talvez até horas, mas minha cabeça estava cheia demais para cair no sono completamente. Meus olhos ardiam, minha cabeça doía, e meu braço coçava, mas não chorei.
Em vez disso, pensei no kirin.

Obs: então... volteiii, espero q tenham aproveitado o cap, vou tentar posta os outros 6 q tô devendo essa semana ainda, qualquer coisa aviso vcs, obrigada!

Caçadora De UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora