QUANDO ASTRID ACORDA

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EU ESTAVA COM FRIO NAS COSTAS. Minha camiseta ficava subindo, expondo minha pele à brisa da noite. Eu me encolhi ainda mais para a frente, puxando o calor para mais perto do meu peito.
O calor baliu.
Abri os olhos com dificuldade, como se estivessem colados por pedaços de sono ressecado. O alvorecer cinzento e úmido penetrou por eles, um tanto embaçado. O parque. O banco. E Bonegrinder no meu colo, com a cara enfiada no meu ombro de forma que o chifre cutucava dolorosamente meu braço.
Eu estava viva.
Eu me sentei, com cuidado para não mexer na zhi adormecida. Viva ou não, eu não tinha certeza se estava com disposição para lutar. Passei a mão pelo rosto e fiz uma careta ao ver a mistura de sangue seco e muco em minha palma. Não queria nem saber como estava minha aparência. Parte disso devia ser por causa do meu surto de choro, mas eu tinha certeza de que deveria ser ainda mais por causa...
Aquilo não aconteceu de verdade, aconteceu? Fiquei paralisada na metade do caminho até o chafariz na clareira. Meu papinho agradável com o karkadann? Fora um sonho, um pesadelo.
Talvez meus olhos e minha garganta doloridos fossem produtos do meu choro, de eu ter corrido pela cidade num acesso de fúria assassina.
Mas o sangramento do nariz e Bonegrinder ali no banco...
Não. Era um sonho, derivado de muito estresse e muitos dias passados observando a cena na rotunda. Bucéfalo! Certo. Na noite anterior, eu conversei com um unicórnio de 2.300 anos de idade. Nem mesmo as árvores viviam tanto tempo.
Lavei o rosto no chafariz e tomei alguns goles de água potável em uma torneira ali perto.
Agradeci a Deus pelas obras públicas da Roma antiga. Hesitei por um momento, depois enfiei a cabeça inteira debaixo do jato d'água, deixando que o líquido gelado me acordasse e acalmasse a pele que ardia. Meu rosto e pescoço estavam muito sensíveis ao toque, e a pele
nos meus braços e nas minhas mãos estava ressecada e descascando.
Olhei novamente para o banco, e a visão me fez ficar de pé em um salto. Bonegrinder tinha sumido! Mas não tinha ido longe; eu a encontrei a algumas árvores de distância, farejando o chão, possivelmente caçando um esquilo. Como eu a levaria para casa pelas ruas de Roma
sem que ela atacasse alguém? Principalmente se estivesse com fome.
Peguei o alicórnio no local para onde ele tinha rolado, debaixo do banco, e vasculhei uma lata de lixo ali perto, atrás de algumas coisas. Achei sacolas plásticas, barbante...
Bonegrinder tinha fugido de jaulas de aço e catacumbas. Como qualquer uma dessas coisas iria segurá-la?
Ouvi um coro de guinchos vindo das árvores. Ótimo. Ao menos ela conseguira capturar o café da manhã. Agora, se ao menos eu conseguisse tirá-la dali sem dar de cara com atletas ou com alguém da manutenção do parque...
Bingo: uma corrente de bicicleta. Juntei tudo que encontrei e assoviei para a zhi. Ela veio trotando, com pedaços de pelo de um rabo marrom presos nos dentes. Eu me ajoelhei e
comecei a trançar as sacolas plásticas para formar uma corda grossa. É claro que Bonegrinder conseguia roer cadeados de aço, mas talvez só se ela pudesse alcançar a corda com os dentes. Eu me lembro de ler uma vez que um jacaré consegue fechar a mandíbula com grande força,
mas que é relativamente fácil mantê-la fechada. Eu me perguntei se isso funcionaria com a zhi.
Passei a corrente de bicicleta ao redor do focinho dela, que se encolheu quando os elos
beliscaram sua pele. De repente, tive um vislumbre: um pedaço de cobre e um focinho coberto de sangue seco. Uma imagem da noite anterior. Bonegrinder olhou para mim, com os olhos mais azuis e límpidos do que nunca, e tirei a corrente da cara dela. Talvez o plástico fosse um
pouquinho mais delicado. Ela baliu quando tentei passar os elos de plástico cuidadosamente elaborados ao redor da sua cabeça, mas acabei conseguindo firmar bem a engenhoca. As mandíbulas dela estavam presas por uma corda de sacos plásticos que ia até a bandana ao
redor do pescoço. Usei a corrente de bicicleta como guia, com uma segunda proteção feita de
mais sacolas ao redor do meu pulso; a mão livre segurando-a com firmeza pelo chifre. Tenho
certeza de que estávamos ridículas, mas como eu estava prestes a levar um unicórnio pelas
ruas de Roma, o fato de nossos acessórios saídos do lixo serem ou não percebidos como um
desastre da moda estava no fim da minha lista de preocupações.
- Agora, seja boazinha - pedi a Bonegrinder.
Ela lutou, tentando em vão se soltar da minha mão. Isso ia ser uma merda. Andamos desajeitadamente em direção aos portões do parque, e comecei a perceber o quão impossível
seria essa tarefa. Eu não podia deixá-la ali e não tinha como fazer contato com ninguém do Claustro para vir nos buscar, a não ser que eu começasse a mendigar por trocados nas esquinas para poder usar um telefone público.
Bonegrinder se enrijeceu, e seu pelo ficou eriçado. Ah, não. Apertei com mais força tanto
a guia quanto o chifre quando ela começou a rosnar. Era um atleta? Uma equipe de manutenção? Um vendedor de comida?
Então ela saiu correndo, e comecei a acompanhá-la para continuar mantendo-a presa.
Descemos a rua a toda e, no meio da minha noção paralela de tempo de caçadora, vi a solução. Íamos correr.
E eu a guiaria.

Caçadora De UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora