QUANDO ASTRID HARMONIZA AS CAÇADORAS

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FOI SURPREENDENTEMENTE FÁCIL CONVENCER Lilith a ir embora depois disso. Acho que minhamãe sabia quando era derrotada. Ela já havia arrumado a maior parte das coisas, mas eu asegui até o quarto, e tivemos uma conversa meio esquisita sobre futilidades enquanto elafechava as malas, e Phil cuidava da mudança da data do voo de Lilith para dali a um dia.
— Estranho, hein? — disse Lilith, ao fechar a última mala. — Alguns meses atrás, euestava ajudando você a se arrumar. As coisas mudaram muito, não é?
Eu estava de pé ao lado da janela, observando as ruas. Tinha alguma coisa formigando nofundo dos meus sentidos, algum sussurro de percepção de unicórnios, mas nada forte obastante para me causar uma preocupação real.
— É — falei, por fim, me virando para encará-la. — Mudaram mesmo.
— Você sabe que só quero o melhor pra você, não é, querida? É o que eu sempre quis.
Concordei com um aceno de cabeça, torcendo para que Phil chegasse logo e me salvassedesse tetê-a-tête indesejado. Quando ela chegou, fomos com Lilith devolver o carro alugado ea deixamos na estação de trem. Ela disse que poderia ir sozinha, mas, por algum motivo, euquis vê-la saindo de Roma. Queria saber que ela estava tanto segura quanto longe.
— Escute, pessoal — disse Phil, quando fizemos nossa reunião na casa capitular no finaldaquela tarde.
Tínhamos passado o dia arrumando tudo, tirando da mala objetos necessários e cancelandoarranjos de viagem. Não sei como Phil convenceu os pais das caçadoras a deixá-las ficardepois de tudo que acontecera, depois dos comunicados histéricos e das previsões de juízofinal. Ela havia passado uma hora ao telefone com Neil elaborando uma estratégia. No
momento, ele planejava continuar procurando Jaeger, depois voltaria para o Claustro assimque pudesse para ajudar. Enquanto isso, meu palpite era que nenhum dos pais sabia que tinha colocado a segurança das filhas nas mãos de uma adolescente. Era isso ou os próximos dias
trariam uma horda de pais furiosos ao Claustro para levarem suas filhas embora.
— Como vocês sabem, tivemos grandes mudanças aqui, e a mais importante delas é amudança para uma Ordem da Leoa mais justa e democrática para todas.
— Precisamos recitar o juramento de lealdade agora? — debochou Cory.
Phil mostrou a língua para Cory.
— Primeiro, quero dizer que agradeço o voto de confiança…
— Ou você poderia encarar como um voto de falta de confiança em sua tia — disse Grace,com um sorriso simultaneamente doce e venenoso.
— Independentemente de como aconteceu, aconteceu — disse Phil, retribuindo o sorrisocom uma quantidade similar de doçura e agressividade. — Além do mais, quero dizer queaprecio o trabalho árduo que fizeram hoje à tarde, limpando e arrumando a casa capitular e a
parede. Sei que não foi fácil descobrir onde todos os ossos ficavam…
Dorcas, coçando debaixo da beirada do gesso, disse:
— Eles estão mortos. Não acho que se importem com o lugar da parede em que vão ficar.
Cory pigarreou e fez um gesto para Phil andar mais rápido.
— Vamos falar de algumas políticas internas daqui a pouco, mas primeiro, vamos abrirespaço pra minha prima, a incrível desafiante da morte, Astrid. — Ela imitou uma multidão
aplaudindo quando fiquei de pé e olhei para as caçadoras. Aparentemente, pode-se tirar uma
garota do time de vôlei, mas não se pode tirar o time de vôlei da garota.
— Obrigada. Eu, hum… — Por onde começar? Passei o dia de ontem conversando comum karkadann. Descobri que Clothilde Llewelyn não o matou, que os unicórnios nunca ficaramextintos, que eu e meu grupo corríamos o risco de sofrer uma emboscada a cada segundo, a
não ser que encontrássemos Marten Jaeger e o grupo de kirins que jurou lealdade a ele? — Euqueria mostrar uma coisa pra vocês.
Eu me virei e levantei a blusa.
A sala se encheu de gritinhos sufocados.
— Foi isso que aconteceu comigo naquela noite. Como eu sobrevivi, não sei dizer. Estavano chão quando recuperei a consciência, mas durante horas não consegui me mexer. O kirinque tinha me perfurado estava morto. Tinha sido morto por outro unicórnio.
— Por quê? — perguntou Zelda.
Era agora que as coisas começavam a ficar estranhas. Abaixei a blusa e encarei o grupo.
— Parece haver… facções.
Melissende riu. Eu as estava perdendo.
— Aquela noite não foi acidental. Aqueles kirins nos emboscaram. Eles sabiam queachávamos que só haveria um. Eu… — foi o que me contaram... Foi o que um unicórnio me contou? — acredito que, de alguma forma, esses kirins estão ligados a Marten Jaeger, e se não
os encontrarmos, se não descobrirmos o que está acontecendo, vai haver mais emboscadas.Mais ataques surpresa.
Melissende agora revirou os olhos.
— Unicórnios trabalhando com um homem? Um não caçador? Não faz sentido. Como elepode chegar perto deles? Como pode falar com eles?
— Não sei — respondi. E o karkadann também não sabia.
Cory estava mordendo o lábio.
— Astrid, isso é loucura. Já fui aos laboratórios da Gordian e trabalhei com Martendurante meses. Sei que aquele garoto contou vários tipos de histórias horríveis pra você, mas,
sinceramente, isso é impossível. Marten não conseguia nem colocar as mãos em um zhi se eunão estivesse presente para ajudá-lo.
— Talvez ele tenha outras caçadoras — disse Dorcas. Todo mundo olhou para ela. — Oquê? Isso é estranho?
— É! — disse Cory. — Por que ele daria dinheiro para o Claustro se planejava tercaçadoras só dele?
— Mas foi você quem foi até ele, Cory — falei. — Ele sabia de toda a sua empolgaçãocom a Ordem. Talvez tenha concordado em ajudar pra poder ficar de olho no que você fazia.
— Com qual finalidade? — disse Cory, ficando de pé. — Por que ele faria qualquer umadas coisas que fez? Por que desapareceria agora se quisesse nos observar?
— Controlar — disse Phil, baixinho. — Ele sempre quis nos controlar. Nos deu umtreinador, depois tirou. Pagou caras pra dormirem comigo e com Astrid quando achou que
estávamos ficando boas demais. E depois, quando as coisas ficaram ruins por lá, ele saiu dacidade antes de poder ter problemas. Talvez ache que não somos mais uma ameaça.
— Mesmo se isso tudo fosse verdade — disse Cory, andando de um lado para o outroagora —, isso não o coloca como aliado de alguns kirins pra nos caçar. Não acredito que ele
queira machucar ninguém. Não acho que tenha sido ideia dele que Seth forçasse as coisascontra sua vontade.
— Nem eu, mas foi esse o resultado, de qualquer modo — disse Phil.
— Os kirins estão tentando acabar conosco — disse eu. — E se aliaram a Jaeger. Eusoube por uma fonte segura…
— Quem? — perguntou Melissende.
Hesitei.
— Apenas acreditem em mim, OK?
— Acho que não. — Melissende riu de deboche. — Minha irmã mais nova quase morreuna semana passada. Acho que preciso de mais do que sua palavra pra colocá-la em risco de
novo.
— É verdade — disse Valerija do fundo da sala. Ela estava separada do restante de nós,mexendo nas unhas e parecendo irritada. Levantou-se para falar: — O que Astrid diz. Os
kirins e Jaeger estão unidos. E Dorcas também diz a verdade. Fui caçadora dele.
Todas ficamos em silêncio e olhamos para ela.
— Ele me encontrou na cidade. Sem dinheiro, sem casa. Um dia eu vejo um unicórniocomo Bonegrinder, e ele não me ataca. As pessoas falam sobre isso, e ele descobre. Então ele
me encontra e me dá comprimidos. É muito bom comigo. Acho que talvez quisesse transarcomigo, mas não. Ele me leva pra uma casa. Tem muitos unicórnios enfileirados. Como em
uma fazenda. Tem muitos cientistas. Estão com muito medo. Um morreu, talvez muitos, antesde eu chegar lá. Jaeger diz que comigo ninguém vai morrer.
Dorcas parecia cheia de si. O restante de nós estava perplexo.
— Ele diz que fico o tempo que quiser. Me dá uma cama e comida e qualquer coisa que euquero. Mas tenho de fazer exames. Alguns doem, e muito. Doem como aquela cadeira. — Ela
apontou para o trono e tremeu. — Mas ele me dá mais comprimidos depois.
— Quanto tempo você ficou lá? — perguntou Phil.
Valerija deu de ombros.
— Muito tempo. Um dia, ele diz que tenho de ir embora. Entramos em uma van. Eles medizem o que dizer, o que fazer. Dizem que, se eu fizer certo, vocês vão me dar comida, vão medar uma cama. Se eu fizer errado, um unicórnio vai me matar. — Ela cruza a sala até onde oalicórnio dela estava, na Parede dos Primeiros Abates, e o tira de lá. — Vocês escutam isso?Não faz barulho. — Ela jogava o alicórnio de uma mão para a outra. — Muitos dias, eu mepergunto por quê. — Ela olhou para mim. — Você também?
— Sim — respondi. — Eu já me perguntei.
Mas estava com medo de perguntar a Valerija por quê.
— Eu sei. Você sempre pensa, todos os dias. Como os cientistas. Eu vejo você pensando etenho medo que, se eu falo com você, você pensa até descobrir a verdade. Por que você achaque não faz barulho? — Ela sacudia o alicórnio no ar.
— Acho que você não o matou — disse eu, depois de um momento de consideração. —Acho que a magia só funciona se for o primeiro abate de uma caçadora.
Ela concordou.
— Sim. Eles me deram a cabeça dentro de uma bolsa. Um unicórnio que matou esseunicórnio, eles dizem.
Eu me perguntei se teria sido Bucéfalo. Se ele estava me protegendo, mesmo naquela
época.
— Mas aquele foi o kirin que Astrid atacou — exclamou Phil. — O que vimos na noite donosso primeiro encontro com Seth e Giovanni. Talvez tenha sido o kirin que relatou tudo para Marten. Talvez tenha sido o kirin que mostrou a ele quem procurar quando Marten seencontrou com os rapazes no bar!
Valerija baixou a cabeça.
— Sinto muito, Phil, porque você é uma pessoa boa. Naquela noite, quando você voltoupra casa, eu ligo pras pessoas da Gordian. Eu conto pra eles que Neil vai chamar a polícia.
Phil piscou com força.
Mas eu dividi meu quarto com você.
— Ele diz pra contar qualquer coisa que acontece. Eu conto. Acho que é por isso que elevai embora, por isso que não liga, por isso que Neil não consegue encontrar ele.
— Como você pôde fazer isso comigo? — perguntou Phil, com voz trêmula.
— Tenho medo. Tenho medo do unicórnio vir me matar.
— Então por que você está nos contando isso agora? — perguntou Grace. — Não está commedo de os unicórnios matarem você?
— Estou — disse Valerija. — Com muito medo. Mas quando o unicórnio tentou me matarna Toscana, você me protege, Grace. Nós duas quase morremos, mas você me protege. Entãoacho que vou tentar ser caçadora, por vocês. Quando o unicórnio tenta me matar dois dias
atrás, Astrid me protege. Astrid morre por mim.
— Bem, não morri de verdade — falei, ruborizando.
— O que você diz é verdade. Marten Jaeger está com os kirins. Muitos, muitos kirins. Seionde está. Sei onde estão. Posso levar vocês. E quero levar. Porque agora eu sei que o
unicórnio vai atrás de mim pra me matar de qualquer jeito. E você é a única tentando impedir.
— Não confie nela — sibilou Phil. — Ela é uma mentirosa, uma espiã.
Mas o que ela disse coincidia muito bem com o que Bucéfalo me contou. E, além do mais,explicava como a Gordian estava mantendo os kirins: tinham caçadoras. Será que havia outrasgarotas como Valerija, sendo chantageadas ou manipuladas para serem cobaias noslaboratórios?
— Estou falando sério — disse Phil, quando ninguém lhe deu apoio. — Não vou aceitaresta, esta traidora sob meu teto!
— Seu teto! — gritou Melissende. — Você não acabou de falar sobre como seríamosdemocráticas agora?
Grace olhou para ela, incrédula.
— Você quer que a espiã viciada nos leve a algum lugar?
Melissende franziu a testa.
Rosamund se pronunciou.
— Valerija pode estar falando a verdade, mas que diferença faz? Se a outra noite provaalguma coisa, é que não temos a capacidade de caçar tantos unicórnios de uma vez.
— Mas — digo — acho que podemos aprender.
Olhei para o alicórnio na mão de Valerija e para a parede, que ainda emitia o som suaveque parecia um zumbido. A magia funcionava porque todos os ossos na parede eram deunicórnios que uma caçadora tinha matado. Virei a cabeça e olhei para o trono, ainda em umaposição estranha e perto dos restos da porta da casa capitular.
O trono era feito dos chifres de unicórnios que tinham matado caçadoras. Na primeira vezem que toquei nele, ele queimou como veneno de alicórnio, como estar perto do karkadann.
Mas, na vez seguinte, tive uma visão da última batalha dos unicórnios com a dor, como naprimeira vez em que falei com o karkadann, quando ele quase me matou com suas imagens e
seu veneno. E agora…Andei até o trono e coloquei a mão sobre o braço. A visão de Jutland surgiu em minha
mente, então apertei o maxilar e lutei contra ela até que realmente se formasse, mas sem medominar. Nenhuma dor acompanhou as imagens, os sons, os cheiros. Foi uma sensação pura.
Como minha última conversa com o karkadann. Será que eu tinha adquirido umaresistência ao veneno? Será que tinha ficado mais forte, de alguma maneira? Será que com otrono as coisas funcionavam do mesmo jeito?
Filha de Alexandre, estou ensinando a você agora. Quando o kirin perfurou você, eleensinou a você. Quando você brinca com sua… Bonegrinder?... ela ensina a você. Quandovocê fica em sua prisão, cercada de ossos que cantam e chifres que gritam, tudo é umalição.
O trono, esta sala, esta construção inteira. Não era uma câmara de torturas. Era umaferramenta de treino.
Eu precisava fazer um teste.
— Ursula — pedi. — Me faça um favor e se sente neste trono.
— O quê? — gritou ela. — Não! Você está louca!
— Acho que não vai te machucar.
— Astrid! — disse Phil. — O que você está fazendo?
— Ou talvez doa, só um pouco. Mas vai parar. Olhem! — Eu me sentei na cadeira, e ascaçadoras mortas começaram a lutar de novo. Sorri entre dentes cerrados. — Estão vendo?
Melissende balançou a cabeça em negação.
— De jeito nenhum. Acho que me lembro, uma semana atrás, de quase ter a cabeçaarrancada por sugerir a mesma coisa. — Ela se virou para a irmã e começou a falar em
alemão.
— Não vou — anunciou Ursula, e cruzou os braços por cima do peito.
— Mas você foi a única que teve uma experiência parecida com a minha — argumentei. —A única que foi exposta a veneno de alicórnio o suficiente pra começar a criar resistência. Vaiser um choque muito grande pras outras.
Ursula fez que não com a cabeça veementemente, e Melissende passou o braço ao redordela.
— Deixe-a em paz. Ela passou por muita coisa.
— Eu sento — disse Valerija. — Passo por muitos exames e testes na fazenda. Muitosvenenos. E, na Toscana, fui perfurada por kirin, lembra? — Ela puxou o ombro da camisetapreta surrada, baixando-a até que pudéssemos ver as marcas de espiral dupla no espaçoabaixo da clavícula. — Eu vou.Fiquei de pé, e ela se juntou a mim na frente do trono e apertou minha mão, com força.
— Vai doer a princípio — avisei a ela —, mas aguente firme. Concentre-se no que ele vailhe mostrar.
— Ah, então agora é uma cadeira alucinógena? — perguntou Cory.
Valerija concordou, respirou fundo e se sentou na cadeira.
Em seguida, ela gritou.
— Não! — gritou Phil. — Astrid, ajude-a, acabe com isso!
O que eu tinha feito? Agora eu estava fazendo experiências com pessoas, seguindo asteorias doidas do unicórnio meio maluco que achava que era um antigo herói de guerra? Vê-lase contorcer de dor era mais do que eu conseguia suportar.
Segurei a mão de Valerija para tentar puxá-la do trono, mas ela se soltou de mim e segurounos braços com força. Ela começou a tremer, até que seus gritos cessaram e viraram um
choramingo quando os olhos dela se reviraram. Um minuto infindável se passou, e metade dasgarotas da sala estava escondendo o rosto ou olhando entre os dedos com expressões
horrorizadas. Em seguida, de maneira quase inaudível, Valerija sussurrou:
— A batalha. O sangue. Tantos mortos. Tem uma das minhas. Uma Vasilunas. Ela parececomigo. — Ela piscou várias vezes. — Acabou. A dor. Agora, só tem as visões.
Ela ficou de pé e esfregou os braços, como se estivesse com frio. Cada pelo do corpo delaparecia estar arrepiado, e a pele quase reluzia. Ela estava sem fôlego, satisfeita.
— Eu me sinto… forte.
— Scheie! Nein! — gritou Melissende, ficando de pé. — Ich glaube das nicht. Isso nãoprova nada. Você não se torna uma caçadora melhor porque se senta em uma cadeira.
— É — disse Grace. — Como podemos provar? Nos revezando em disparos contraBonegrinder pra ver quem a mata mais rápido?
Todas olhamos para a zhi que acorrentamos na parede do canto.
Ela não estava lá.
— Porcaria de mestra de escapadas! — gritou Cory. — Ela ainda deve estar no Claustro.
— Não necessariamente — disse eu. — Houve um momento na semana anterior em que atrancamos aqui nas catacumbas, e ela escapou. Com a porta da casa capitular quebrada…
— Quando? — perguntou Cory.
— Foi na noite em que Phil… — Olhei para Cory com um pedido de desculpas. — Desculpe. Tinha tanta coisa acontecendo que me esqueci de contar.
Phil franziu a testa para mim.
— Foi naquela manhã em que você saiu e voltou com cheiro de lixo?
— Foi na manhã seguinte à noite em que você jurou matar Seth? — disse Cory, claramente insatisfeita por ter sido deixada de fora.
— Com licença? — disse Dorcas. — Não devíamos estar procurando Bonegrinder?
— Estão vendo? — disse Melissende. — Que tipo de supercaçadoras são vocês se não conseguem nem manter um bebê zhi preso?
Nós subimos pela escada e dobramos à esquerda na entrada das catacumbas. Conforme as caçadoras se espalhavam pela área irregular e coberta de terra, evitando os cantos vazios nas paredes onde os ossos de caçadoras antigas repousaram um dia, parei e olhei para Valerija.
Ela também estava imóvel, com a cabeça erguida, concentrando-se em alguma coisa que ninguém mais conseguia ver nem ouvir.
Bonegrinder estava bebendo água no chafariz do pátio da frente.
Vi com clareza, senti o unicórnio engasgar ao engolir uma mosca que flutuava na água, senti um espirro surgindo dentro do focinho dela quando bebeu muito rápido. Os olhos de Valerija se encontraram com os meus. Ela também via, eu sabia. Ela ergueu as sobrancelhas para mim. Concordei em silêncio e ela se virou, seguindo para a escada.
Esse era o poder, essa era a sensibilidade que entendíamos de modo tão equivocado. Foi assim que eu soube que havia um zhi no quintal dos Myerson, um kirin escondido entre a cerâmica quebrada, um unicórnio novinho caçando carneiros. Foi assim que eu soube que havia um grupo deles esperando nosso ataque. Nossas habilidades natas conseguiam perceber se havia um unicórnio por perto. E, estando todas harmonizadas, conseguíamos dizer exatamente onde ele estava. Conseguíamos ver pelos olhos deles, entender os pensamentos deles. Conseguíamos saber para onde se moveriam antes mesmo que eles soubessem.
Senti as mãos de Valerija se fecharem ao redor do corpo da zhi, senti a decepção de Bonegrinder e a frustração de ser capturada novamente.
— Val a encontrou — anunciei, e sorri para os rostos incrédulos ao meu redor. — E então, quem é a próxima a se sentar no trono?
                               
                                 * * *
Não vou dizer que a noite foi bacana. Grace foi a voluntária seguinte para o trono, e o processo foi penoso para ela. Ela pulou da cadeira involuntariamente várias vezes e, no final, implorou que Melissende a segurasse até a dor ficar mais suportável. Ursula foi a seguinte, e,
como eu suspeitava, foi mais fácil para ela, por causa da exposição prolongada ao veneno do alicórnio. O mesmo aconteceu com Zelda. Dorcas se recusou a tentar. Rosamund vomitou no segundo em que se sentou, afastando-se em seguida para ir até o piano, onde ficou tocando
escalas musicais simples até as mãos pararem de tremer.
— Tento de novo mais tarde — disse ela.
Olhei para Cory, cuja expressão mostrava partes iguais de pavor e determinação.
— Segura minha mão? — pediu ela.
— Claro.
Rosamund iniciou uma música que eu não conhecia enquanto Cory e eu nos juntamos na frente do trono. A música era sofrida, porém frenética, como as batalhas nas visões. Os troféus na parede atrás de nós murmuravam junto, e Cory apertou minha mão com tanta força que
espremeu meus ossos.
— Vai ficar tudo bem — sussurrei. — Juro; é melhor do que um buraco nas costas.
— Verdade — disse ela, e respirou fundo. — Pela minha mãe.
Eu concordei, e ela sentou-se.
Ao contrário das outras, Cory não gritou, mas ofegou, e seus olhos ficaram arregalados.
Phil, que tinha passado a noite toda parecendo estar à beira das lágrimas, escondeu o rosto nas mãos. Cory quase arrancou meu braço, e cada músculo de seu corpo pareceu retesar.
— Você consegue, Cory — falei. — Se concentre na música.
— Estou bem — sussurrou ela. — Faço o que for preciso. — E sempre tinha feito mesmo. Rosamund, do outro lado da sala, parou no meio da melodia.
— Vocês querem que eu pare?
— Não! — gritou Cory, e começou a se contorcer. Surpresa, Rosamund voltou a tocar.
Um minuto depois, acabou, e ajudei uma Cory trêmula a sair da cadeira e sentar no chão enquanto Phil vinha correndo com um refrigerante e biscoitos.
— Foi horrível — disse Cory, depois de se recuperar um pouco. — Que ideia brutal.
— Como você está se sentindo? — perguntou Phil.
— Como as outras — disse Cory. — Por exemplo, mesmo agora, Bonegrinder está planejando como atacá-la apesar do anel. Isso pode se tornar um problema. Ela acha que suas
panturrilhas têm um aspecto delicioso.
O queixo de Phil caiu. Cory riu.
Melissende ficou de pé e andou até o trono.
— Minha vez.
Depois de todas as caçadoras, exceto Dorcas, entrarem em harmonia, Melissende insistiu em fazer um teste nas habilidades recém-descobertas. Eu estava nervosa com a empreitada, mas Phil concordou e indicou Melissende para liderar a caçada. Suspeitava que minha prima
acabaria sendo uma donna bem democrática. Melissende levou consigo sete caçadoras recém-harmonizadas (o braço de Dorcas e
minhas costas ainda em processo de cicatrização nos deixaram de fora do grupo), e, com Phil, nós reviramos a despensa do Claustro e fizemos uma brincadeira que Phil chamou de “O que Bonegrinder vai comer?”.
— Então é um “não” pra brócolis, berinjela, pão de alho e melão — disse Dorcas, lendo a lista.
— E “sim” pra presunto, linguiça, salame, pernil, carne de cordeiro moída, anchovas e lulas secas — disse Phil. — Assim como as embalagens de tudo isso. E, aparentemente, minhas panturrilhas.
— Acho que Cory estava brincando — menti. Phil tinha panturrilhas bonitas e musculosas, e Bonegrinder era uma connoisseur.
É claro que a diversão e a brincadeira eram para nos distrair do medo paralisante de eu ter cometido um erro terrível. E se houvesse outra emboscada? E se a cadeira não nos desse sensibilidade extra quando se tratava de uma caçada? E se eu estivesse mandando sete garotas
para a morte? E se eu tivesse convencido cada uma de que poderiam encarar um grupo de
kirins e agora elas estivessem sangrando até a morte pelas ruas e me amaldiçoando com seus últimos suspiros…
Bonegrinder ergueu a cabeça e inclinou as orelhas para a frente.
— Elas voltaram! — disse Phil.
Nós quatro saímos correndo da cozinha e fomos até a rotunda, cada uma tomada de temor e ansiedade.
Sete caçadoras estavam enfileiradas sobre o piso de mosaico, cansadas da batalha, cobertas de cortes e arranhões. As roupas estavam rasgadas e sujas, manchadas de sangue e de outros fluidos. Elas pareciam exaustas e alegres.
— E aí? — disse Phil.
Uma a uma, foram mostrando um alicórnio e sorrindo.

Caçadora De UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora