QUANDO ASTRID ENCONTRA UM MONSTRO

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SE MEUS PODERES DE CAÇADORA fazem meu corpo se mover mais rápido do que o normal, será que fazem o oposto com o meu cérebro? Só isso explicava o tempo que demorei para entender o que tinha acabado de acontecer. Em um minuto, eu estava tomada pelo desejo de
caçadora de dominar um unicórnio feroz e, no seguinte, estava olhando para minha prima em estado de choque.
Bonegrinder queria atacá-la.
- Não - sussurrei.
- Astrid, sai daqui! - gritou Phil, mas desta vez sem me olhar nos olhos. - Por favor, vá embora. - Ela olhou para Neil. - Todos vocês.
Ele ficou de pé, com o maxilar tão contraído quanto as mãos ao lado do corpo.
- Você está machucada? Apenas responda, está machucada?
Phil negou levemente com a cabeça.
- Saia. Daqui.
- Bem, você não está feliz, e isso me preocupa. Você chegou a ficar feliz?
Meu coração pareceu implodir no peito, e estiquei a mão cegamente à procura da borda da escrivaninha, à procura de qualquer coisa onde me apoiar. Valerija permaneceu de pé ao lado da porta, com a expressão impassível. Ela podia muito bem ser cega e surda, como o chafariz de mármore no pátio da frente. Todos estavam muito quietos, e eu queria gritar.
- Philippa, não dou a mínima pra Ordem. Eu me importo com você. - A voz de Neil quase falhou ao emitir as palavras. - Me conte. Foi uma escolha sua?
Volto pra brincar com você mais tarde. Era o que ela tinha dito a Bonegrinder.
A cabeça de Phil pendeu mais um pouco, e a resposta foi inaudível. Não importava.
- Quem foi?
Phil não respondeu. Neil olhou para mim.
- O namorado dela - contei, imediatamente. Os olhos de Neil vacilaram ao som dessa palavra. - Seth Gavriel. É aluno de um programa de estudo da língua em um colégio interno, em Trastevere. - Eu disse a ele o nome do colégio.
Neil captou.
- Vou chamar a polícia.
- Não, Neil - disse Phil. - Não.
- Mas, Phil - disse eu, incrédula. - Se ele...
- Astrid! - gritou ela. - Saia daqui!
Meus olhos arderam com mais intensidade do que aquela provocada por veneno de alicórnio, e fui em direção à porta. Neil colocou as mãos nos meus ombros, mas eu o afastei.
Valerija saiu comigo, mas assim que cheguei ao corredor, fugi correndo.
Na rotunda, vi Cory saindo pela porta que levava ao subsolo. Ela havia enfrentado a escada, afinal.
- Tranquei Bonegrinder nas catacumbas - disse ela. - Deveríamos pensar em fazer
isso com mais frequência. Limpamos aquele lugar especificamente para ela, mas depois a mimamos, deixando que fique aqui em cima o tempo todo... - Ela me encarou. - Você está bem?
- Não.
Naquele momento, achei que jamais ficaria bem de novo. Olhei para a carcaça, para o painel, para qualquer coisa. Fechei os punhos e contraí os dedos. Eu queria arrancar os olhos
dele. Queria chutar sua cara. Será que ele não sabia que éramos caçadoras? Será que não sabia do que éramos capazes?
De repente, entendi o que Melissende tinha dito sobre as caçadoras antigas mandarem grupos de zhis para atacar Acteons. Não havia nada que eu quisesse mais do que soltar
Bonegrinder em cima de Seth Gavriel. Assim que o pensamento me ocorreu, me vi subindo na plataforma. Arranquei a espada da
mão do manequim. Verifiquei a lâmina: ainda afiada. Não era a verdadeira montante de
Clothilde Llewelyn, mas serviria.
- Astrid - disse Cory, horrorizada. - O que você está fazendo?
Desci da plataforma e fui até a carcaça do re'em. Ergui a espada acima da cabeça e a abaixei com força contra o chifre do unicórnio.
O som metálico ecoava pelo corredor conforme eu batia. Precisei de cinco golpes, mas acabei cortando a ponta do chifre. Eu esperava que ainda estivesse recente o bastante. Soltei a
espada em cima do corpo e ergui o alicórnio. Estava pesado e quente na minha mão. Ainda poderoso. Talvez ainda venenoso.
Cory entrou na minha frente.
- Você ficou louca?
- Fiquei - respondi. - Começou quando vim pra cá, e agora estou completamente louca. - Eu me virei para a porta.
- Astrid, espere! Pra onde você vai?
- Ele estuprou Phil, Cory. Estou indo matá-lo.
Precisei de duas horas vagando pelas ruas de Roma para perceber o quão era péssima aquela ideia.
Talvez fosse o fato de que não levei meu passe de ônibus, nem dinheiro, e de que andar até Trastevere (e até mesmo correr, o que eu tinha feito nos primeiros vinte minutos) ajudou muito a aplacar minha fúria.
Nada pareceu ter mudado além das portas do Claustro. Havia as mesmas motos barulhentas, as mesmas pessoas alegres reunidas ao redor de mesas de cafés nas calçadas, os
mesmos observadores de pessoas e sorveterias com suas vitrines coloridas e música pop.
Ninguém sabia o que tinha acontecido com ela, comigo. Era inconcebível, mas o mundo continuava como sempre fora.
Até passei pelo local do ataque do re'em na Via Claudia. Havia sangue nos vãos entre as pedras do calçamento, mas nada mais que revelasse o terror e a violência daquela noite. Mais uma ou duas chuvas e tudo seria apagado. Eu me perguntava quantas outras manchas de sangue tinham sido lavadas pela água nos milhares de anos que se passaram desde a fundação daquela
cidade. Gladiadores e sacrifícios, assassinatos e execuções, batalhas e protestos, e até acidentes. O que era um único ato de violência diante de gerações de mortes? Por que parecia
que meu mundo estava desmoronando?
Por fim, meus pés diminuíram o ritmo perto de outro antigo muro de pedra no lado norte da cidade. Onde eu estava agora? As redondezas me pareciam vagamente familiares. Isso mesmo, era a Villa Borghese, o belo parque onde reencontramos Seth e Giovanni pela primeira vez.
Phil tinha planejado aquilo; a Phil alegre, jovial e que gostava de se divertir. O parque era quase irreconhecível no escuro. Cada lembrança que eu tinha dali agora estava manchada pela minha nova realidade.
Ali estava o chafariz onde Seth e Giovanni tinham esperado por nós. Aqui estava o caminho onde nos separamos quando Giovanni me levou para Trastevere. Eu jamais deveria tê-la deixado sozinha. Não deveria ter ficado no Claustro hoje. Era minha culpa? Fui eu?
Ela nem mesmo quis falar comigo hoje. Não queria olhar para mim. Me fez sair do quarto para conversar com Neil. Devia me culpar por aquilo. Se eu tivesse ido com ela hoje...
Durante toda a minha vida, Phil me protegera. Ela veio para Roma para ficar comigo; decidiu permanecer, mesmo depois de concluir que discordava da ideia das caçadas; sempre me dava cobertura, estivesse eu brigando com os Bartoli ou lutando contra um unicórnio. Ela
me abraçava quando eu estava com medo, me consolava quando eu estava triste, me amava mais do que qualquer outra pessoa que eu tivesse conhecido.
E, na única vez em que eu podia tê-la protegido, falhei.
Minhas pernas falsearam, e eu caí, exausta, sentada em um banco. É claro que ela não confiaria em mim hoje. Jamais voltaria a confiar em mim! E vejam só, essa era eu, sem
dinheiro, nas ruas de Roma, com um alicórnio serrado na mão. Eu tinha saído correndo pela noite sem plano nenhum. Sem saber onde encontrar Seth; sem ideia do que fazer com ele
quando o encontrasse; sem entender direito o que tinha acontecido com Phil, além do fato de que ela perdera a virgindade e que isso não fora escolha dela. Será que ele a tinha
machucado? Ameaçado? Drogado?
Algum de nós tinha como saber que ele era capaz de uma coisa assim? Phil? Giovanni? Será que Giovanni sabia o que o amigo fizera? Eu queria ouvir os detalhes sórdidos, a verdade, mas, por outro lado, temia isso com todas as fibras do meu ser. Talvez Phil estivesse certa ao me expulsar.
Comecei a chorar; lágrimas quentes saindo dos olhos que as tinham segurado por muito tempo. Chorei por Ursula e Phil, pelo olhar apavorado nos olhos do jovem unicórnio que Phil tinha matado, pela foto de Sybil Bartoli, que olhava para mim de cima da mesa de Cory todos os dias. Derramei lágrimas por Lilith, que não tinha ideia do que estava fazendo quando me mandou para Roma, e por Neil, que não tinha ideia do que fazer quando chegamos aqui.
Chorei por Bonegrinder, cujo amor dependia tanto de uma condição específica, e por mim, para quem o amor era qualquer coisa, menos isso.
Chorei até meus olhos arderem como se marcados por um ferro quente, e mais, até meu corpo todo arder, pulmões e garganta e pele e carne. Só então, quando eu mal conseguia me
mover de tanta dor, mal conseguia erguer o olhar, foi que me dei conta de que não estava sozinha e de que não eram minhas lágrimas que queimavam minha pele.
Ali, a menos de 4 metros, havia um karkadann. Maior do que se podia imaginar: um elefante, um tanque, um aríete feito de morte compactada, o monstro estava de pé olhando para mim, mexendo a enorme cabeça com a graciosa lentidão de todos os grandes animais. Seu imenso peito se expandia conforme ele inspirava; e quando as narinas se alargavam com o ar expirado, meu corpo começava a arder novamente.
Por que eu ainda não estava morta?
Não sei quanto tempo permaneci assim, em agonia, apavorada demais até mesmo para me mexer. O karkadann à minha frente fazia o animal da rotunda parecer um ursinho de pelúcia.
Cada um de seus pelos longos e crespos carregava mais ameaça do que uma dúzia de kirins; do que dez re'ems, do que um milhão de zhis brancos e peludos. Seus olhos brilhavam em tons de laranja e preto, como carvão em brasa, e uma saliva espumante e rosada pingava de suas
enormes presas. Eu não conseguia olhar diretamente para o chifre. O chão tremeu debaixo de mim quando ele mudou de posição sobre os cascos colossais, e eu entendi por que os
exércitos da Ásia sucumbiam quando viam Alexandre montado em uma criatura assim. Fiquei sentada, paralisada de terror, e esperei pelo fim.
Ele não se aproximou. Lentamente, em meio à queimação, deslizei para o lado. O karkadann deu um passo, bloqueando meu caminho. Voltei para o mesmo lugar. Ele fez o mesmo. Fiquei completamente imóvel, e esperei.
- Por favor - sussurrei. - Me mate, mas não deboche de mim.
O kirin, destroçado no monte Mario enquanto Seth sufocava com o cheiro do veneno de alicórnio. Eu, deitada doente na cama em nosso apartamento enquanto minha mãe apertava a mão fria e reconfortante na minha bochecha febril.
Minha vida estava passando em um flash diante dos meus olhos? Se era isso, que grupo estranho de imagens tinha sido escolhido.
Grace segurando a montante de Clothilde Llewelyn. Eu atacando a carcaça do re'em morto. Bonegrinder olhando para mim com adoração e se ajoelhando aos meus pés.
O karkadann continuou me encarando.
Minha mãe. Eu, Minha mãe, Eu, Minha mãe, Eu.
Apertei os punhos fechados contra os olhos. Eu tinha surtado. Minha mente era incapaz de processar a morte iminente. Aquela era a única explicação. Mas, se não era isso, quais seriam as chances de eu realmente entender o que estava acontecendo?
Minha mãe, eu. Minha mãe, olhando para mim, tocando em mim, minha mãe, eu, minha
mãe e eu...
A filha dela.
As palavras surgiram na minha mente, e as imagens se modificaram, deslizaram, se tornaram uma série de estátuas que eu conhecia bem, de pinturas de batalhas, de conversas que tive com Cory. Alexandre, o Grande.
Filha de Alexandre.
Abri os olhos e olhei para o karkadann. Ele ainda estava de pé e com a cabeça erguida; seu chifre terrível e mortal apontava para as estrelas como uma lança.
Filha de Alexandre.
Ele bateu o pé no chão.
- Sim - falei, enquanto o mundo que eu conhecia queimava até virar cinzas. - Eu sou.
* * *
Eu estava arrasada, cansada, totalmente louca. Os unicórnios eram reais; eu já aceitava isso.
Eu era caçadora, imune ao veneno, dotada de habilidades especiais como parte de uma piada cósmica e genética. Até isso eu aceitava. Tinha revirado os olhos quando ouvi aquela conversa sobre incêndios em templos e a deusa Diana e a maravilhosa carreira de um jovem
príncipe macedônio e seu cavalo de guerra, um animal de confiança dotado de um chifre, mas engoli a história. Eu tinha visto os efeitos do Remédio em primeira mão. Tinha visto um zhi se subjugar a uma caçadora e depois atacar uma pessoa comum. Eu aceitava também a Ordem da Leoa e sua magia.
Mas, conforme as imagens me surgiam na mente, espontâneas, mudando e mesclando-se em
um quebra-cabeça bizarro de associação de palavras, comecei a me perguntar se toda a magia que tinha acontecido antes era meramente um prelúdio.
Eu não podia estar falando com um karkadann.
Filha de Alexandre, disse ele em minha mente, e então eu vi de novo o kirin morto na montanha.
- Foi você - concluí. - Você matou os kirins naquela noite. Por quê?
Por que eu achava que ele podia me entender? Era por isso que diziam que Alexandre conseguia conversar com Bucéfalo? Se eu olhasse intensamente para o unicórnio, eu conseguiria projetar imagens à força na mente dele? Que tipo de pensamentos um unicórnio tinha, afinal?
Eca. Pensamentos felizes, percebi, quando repentinamente tive uma visão bastante clara do karkadann devorando os kirin. Nojento.
O karkadann resfolegou e ergueu a cabeça. Orgulho? Aquilo era orgulho? Coloquei a mão na testa, que latejava. Doía demais.
- Por que... queima?
Alicórnios alicórnios alicórnios... e lutadores de wrestling. Hã?
Fiquei constrangida ao me dar conta de que minha associação de palavras para força era um cara de sunga metálica e o rosto pintado. O veneno do karkadann era forte. Forte o bastante para ser sentido de longe. Forte o bastante para afetar até mesmo uma caçadora.
- Por que você matou o kirin? Comida?
Giovanni com a mão dentro da minha blusa. Eu fiz uma careta. Uma câmera. Eles estavam nos espionando. Os kirins estavam nos espionando?
- Por que você não está me matando agora?
Filha de Alexandre.
- Não - neguei, com dor demais para ser qualquer coisa além de direta. - Filha de Clothilde Llewelyn.
Risadas.
- Eu mato unicórnios - disse eu. - É isso que sou!
Um kit de química. Um band-aid em um joelho ralado. A imagem de Clothilde Llewelyn.
A estátua da caçadora no chafariz do pátio de entrada.
- Não entendi. - Essas palavras saíram da minha boca?
O quê, Lassie? Timmy caiu no poço?
Eu não sabia mais quais pensamentos eram meus e quais tinham sido projetados pelo monstro. Será que ele estava brincando comigo antes de atacar? Estava fazendo piada?
Ele baixou a cabeça e a balançou, e eu me encolhi. Ao que parecia, a conversa era igualmente frustrante para o unicórnio.
- Suponho que Alexandre era melhor nisso - comentei.
Ele rosnou, e eu me encolhi. Será que Alexandre conseguia suportar o forte veneno? Como diabos alguém podia suportar se aproximar de uma coisa como essa? Como Clothilde conseguiu erguer uma arma contra ele? Eu mal conseguia respirar, muito menos ficar de pé.
Filha de Alexandre. Perigo.
Imagens de Lino, mirando em um dos alvos de treino enquanto Marten observava. A imagem de Clothilde Llewelyn. Phil, atacando o jovem kirin. Eu, cortando a garganta do
re'em. O kirin que tinha esperado por nós do lado de fora do pátio. Os dois kirins que nos espiavam no monte Mario.
Apertei as mãos contra as têmporas e dei um grito rouco. As imagens continuaram.
Implacáveis, sempre mudando, deslizando, até que começaram a fazer sentido.
Filha de Alexandre, perigo. Os kirins observam. Os kirins se lembram. As Llewelyn dizimaram os unicórnios. As Llewelyn são proibidas.
- Proibidas de quê?
O Claustro de Ctésias. A casa capitular. A Parede dos Primeiros Abates.
De serem caçadoras? Diga isso para... bem, para todo mundo. Os Bartoli, Marten e minha mãe pareciam pensar que éramos as melhores. Como podíamos ser proibidas de sermos
caçadoras se era nosso destino?
- Ainda bem que não são os kirins que decidem, não é?
Na minha mente, Marten observava Phil puxar o arco. A posição dela era perfeita e o disparo foi preciso. Os técnicos se ocupavam do corpo do jovem kirin. Valerija segurava a
cabeça do outro kirin. A Parede dos Primeiros Abates tremia sob minhas mãos - todos, menos o dela.
O karkadann se enrijeceu de repente e virou a cabeça para o lado. Uma nova onda de vapores me atingiu, e me esforcei para permanecer sentada no banco.
B

onegrinder brincando no pátio.
Segui o olhar dele, e realmente havia um zhi perto do portão do parque. O pequeno unicórnio andou lentamente para a frente, e vi que não era um zhi qualquer. Uma bandana cor-
de-rosa estava amarrada em seu pescoço.
- Bonegrinder! - gritei e fiquei de pé, ligeiramente desequilibrada.
O karkadann baixou o chifre como um sinal de aviso, e fiquei paralisada. Bonegrinder ergueu a cabeça, hesitante, e deu alguns passos para a frente, olhando do karkadann para mim.
Como ela tinha se soltado? Cory disse que a tinha prendido nas catacumbas!
Túneis. Liberdade.
Bonegrinder se aproximou o bastante para farejar a perna do karkadann, que abriu a boca.
- Não! - disse eu. - Ela é minha!
Risadas. Correntes. Chicotes. Prisões. Alexandre.
- Não entendo. Você quer dizer que ela é domesticada? - Não exatamente, pensei, me corrigindo. Eu a tinha visto tentar atacar Phil esta noite.
Bonegrinder arrastou a pata sobre o enorme casco do karkadann e fez uma reverência, como fazia comigo.
Servo.
O karkadann pareceu zombar dela.
Os dois kirins deitados mortos na colina enquanto Marten observava Phil disparar flechas no treino.
Bonegrinder se ergueu e olhou primeiro para mim e depois para o karkadann, claramente confusa. Bem, éramos duas. O karkadann estava rosnando agora, com um som tão grave que eu mais o sentia do que ouvia. Retumbava pelos meus ossos como se eu fosse os troféus na
Parede dos Primeiros Abates. O bicho estava zangado. Furioso, na verdade. A qualquer segundo, ele nos partiria em pedaços. Eu me recostei no banco.
De repente, Bonegrinder estava de pé na minha frente, encarando o unicórnio gigante, dando seu rosnado baixo e agudo. Suas pernas estavam afastadas, os membros flexionados,
pronta para atacar.
Servo! Não! Nunca!
Alexandre cavalgando em direção à batalha. Os restantes de mil soldados mortos. Maxilares partidos, dentes e pele em pedaços de cobre, lanças, cicatrizes, marchas infindáveis pelos desertos. Nada de água. Nada de comida, exceto por outra carcaça apodrecida de um soldado que não sobrevivera, jogado como restos para um cachorro.
Alexandre continuou cavalgando.
Os kirins na colina, e então...
Marten Jaeger, enorme, escondido em intensa luz branca. Dor... muita dor. O som de Cory chorando: "Pare!"
O karkadann parou de rosnar e se empertigou, olhando para a pequena zhi.
Eu também fiquei olhando. Aquele último tinha sido... um pensamento dela? A lembrança de Bonegrinder de quando servira de cobaia na Gordian?
Bonegrinder continuou a emitir sons de raiva. Seu pelo fofo e branco estava arrepiado, tremendo ligeiramente enquanto ela encarava o monstro. O karkadann inclinou a cabeça de
novo, angulando o chifre para longe de nós duas, e ela relaxou.
Em minha cabeça, vi uma pequena Ilesha armando o arco contra o jovem kirin. Vi Dorcas atacando o re'em com um canivete. Eu estava melhorando na tradução.
Coisinha corajosa.
Bonegrinder deu um passo à frente e cheirou o karkadann de novo. Quando o gigantesco unicórnio não se mexeu, ela voltou a brincar, passando entre as pernas dele.
Eu me perguntei se eu era o único ser humano a testemunhar essa interação entre espécies de unicórnio. Deveria estar tomando notas? Mas será que eu nem sequer conseguiria erguer
uma caneta? Quanto mais me defender? Minha visão estava começando a escurecer nas
extremidades. Eu estava perdendo a consciência, sufocada pelos vapores. Minhas mãos escorregaram pelo banco até eu estar apoiada nos cotovelos. O karkadann estava me matando aos poucos.
Bonegrinder?
- Sim - respondi. - É assim que a chamamos.
Ela gosta. Não é o nome dela, mas é bom.
- Qual é o nome dela? - perguntei, meio engasgada. - Ela tem outro?
Um bombardeio de imagens, mas eu não tinha mais gritos dentro de mim esta noite. Por fim, elas se uniram.
Todos os escravos têm.
Eu estava deitada, ofegando para respirar sobre as pedras.
Filha de Alexandre, não morra ainda.
- Por que não? - sussurrei. Meus olhos estavam lacrimejando, e meu nariz escorria. O parque oscilava no meu campo de visão. Bonegrinder choramingava com nervosismo, com a respiração quente e reconfortante no meu rosto. - Você gosta de comer comida viva?
Risadas. Não. Não comida.
- Então o quê?
A voz de Giovanni: Astrid Guerreira.
Ele estava debochando de mim. Era tudo um jogo. Torturar a caçadora até a morte. E não uma caçadora qualquer: a Llewelyn.
Eu preciso de você. Liberdade.
- De quê? - Eu mal tinha fôlego para fazer as palavras saírem pelos meus lábios. -Você também é escravo?
Uma vez. Nunca mais.
A escuridão aumentava agora, parecendo me convidar. Cada respiração era entrecortada,
superficial. Meus pulmões eram balões estourados.
E ainda assim, o karkadann sussurrava em minha cabeça.
Me chamavam de Bucéfalo.

Obs: Especial de Natal para vcs, perdoe-me minha ausência, porém meu estado de saúde não está nos melhores, e peço q compreensão de vcs! 😘

Caçadora De UnicórniosOnde histórias criam vida. Descubra agora