QUANDO ASTRID DESCOBRE O INIMIGO

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– SAIA DAQUI — EU FALEI, e minha voz nunca soou tão mortal. — Saia daqui agora.
Giovanni olhou para mim como se nunca tivesse me visto antes, e, por um momento, fiqueifeliz por não haver armas por perto, porque eu pouco confiava nos meus músculos. O re’emnão estava mais lá, mas o sangue dele parecia fluir por minhas veias, queimando com mais
intensidade a cada momento.
Ele saiu pelas portas e se virou quando chegou do lado de fora.
— Tudo bem. Já saí. Agora você vai conversar comigo?
Não falei nada, só fiquei ali o encarando com raiva. As garotas olhavam de Giovanni paramim.
— Astrid, por favor.
Como eu posso ter estado prestes a dormir com esse cara? Como pude pensar que ele era aresposta às minhas orações para escapar deste lugar? Como sequer pude pensar que o amava?
Ele olhou para as caçadoras atrás de mim.
— Tudo bem, será que alguma de vocês pode me ajudar? Estou tentando encontrar meuamigo. Ele tem por volta de 1,90 metro, cabelo louro…
— Nós o conhecemos — disse Zelda, passando o dedo pelo local onde o re’em a tinhaperfurado. — E não sabemos onde está agora.
Giovanni suspirou e olhou para mim de novo, seus olhos parecendo os olhos de umestranho.
— Sei que você está com raiva de mim. E não tenho ideia do que aconteceu entre Phil eSeth. Mas está claro que, tanto quanto eu, você quer que ele seja localizado. Cinco minutos.Fale comigo por cinco minutos, e depois você pode voltar pra dentro do seu convento e passar
o restante da sua vida caçando unicórnios.
As palavras dele me atingiram como um soco no estômago. Fui para fora, e as portas debronze se fecharam atrás de mim.
— Como você sabe o que fazemos? — perguntei, indo para longe das portas, para a áreaao ar livre. O sol dourado da tarde já atingia o pátio com força. Estreitei os olhos e andei em
direção à fonte, onde o ar estava ligeiramente mais fresco. Giovanni me seguiu, com expressãodura.
— Pra ser sincero, achei que era piada. Mas vocês evidentemente levam isso a sério.
Sufoquei um gemido. Ele parecia muito comigo alguns meses atrás.
— Muito a sério. Sou uma Freira de Controle de Animais Selvagens, lembra? — Ele nãodisse nada, não pediu desculpas. — O que você quer?
— É verdade o que você disse sobre Seth e Phil?
— É.
Giovanni fechou os olhos por um momento e, quando os abriu, pareceu ter tomado umadecisão.
— Vou ser completamente sincero. Não é provável que você vá me odiar mais do que jáme odeia.
— Não mesmo — concordei, friamente. — Você foi horrível comigo ao telefone, depoisme deu um bolo, depois seu melhor amigo estuprou minha prima, e agora você me ameaçou naporta da minha casa.
— Ah, vai ficar pior.
— Manda ver.
Ele respirou fundo.
— Tudo bem. Sabe aquela noite em que nos conhecemos e fomos àquela boate?
E eu tinha pulado no kirin e arrancado o globo ocular dele? Claro. Jamais esqueceriaaquela noite.
— Nós deixamos vocês aqui e fomos pra um café. Eu estava muito nervoso porque acheique tinha sido drogado, lembra? Um cara foi até nós e começou a puxar papo. Era muito
simpático, falou que já tinha sido estudante, que também não tinha dinheiro, blá-blá-blá.
Pedimos uma garrafa de vinho, começamos a conversar e ele nos disse que era seu tio…
Tio John? Giovanni viu minha expressão de choque.
— É, também achei meio estranho. Ele tinha sotaque, e eu sabia que vocês eramamericanas. Ele disse que vocês duas eram herdeiras e tinham direito a receber uma fortunaincalculável… e foi exatamente assim que ele falou, “fortuna incalculável”… mas que, se
entrassem pro convento, o dinheiro todo seria entregue pra igreja como parte dos votos devocês.
— Isso é uma mentira deslavada, do começo ao fim.
Giovanni deu de ombros.
— Ele estava pagando o vinho. Quero dizer, pra Seth, já que eu estava apavorado demaispra beber. Ele disse que estava tentando proteger a fortuna da família e que, se
concordássemos em sair com vocês e convencê-las a não entrar pro convento, cobriria oscustos de todos os passeios que fizéssemos juntos e alguns extras. O que quiséssemos.
Tinha sido prematuro dizer que eu não podia odiar Giovanni e Seth ainda mais. Elestinham sido pagos para saírem conosco? Meus dedos formigavam para que eu arrancasse oalicórnio da fonte e o enfiasse no peito de Giovanni.
— Qual era o nome dele?
— Alexandre.
Eu soltei uma gargalhada alta. Temos de dar crédito ao sujeito! Nosso tio Alexandre! Eraquase engraçado. Quase.
— E como era a aparência de “Alexandre”?
— Não sei. Normal?
— Sobrenome? — Será que era O Grande? Ou Magno?
Giovanni balançou a cabeça negativamente.
— Não sei. Não ouvi. E achei mesmo aquilo tudo uma completa besteira, então não deiimportância. Mas Seth ficava repetindo que era uma situação em que ninguém sairia perdendo.
Vocês são bonitas e, ao que tudo indicava, eram ricas, e todos os gastos estavam sendocobertos, então qual era o mal? — Ele olhou para baixo. — Então acabei concordando,
embora achasse a coisa toda meio bizarra. Mas aí, no museu, você não agiu nem de longecomo freira…
Fiquei vermelha ao me lembrar do quanto meu comportamento naquele dia não se pareciacom o de uma freira.
— E você disse aquelas coisas todas sobre sua família estar pressionando você. Então,comecei a pensar que talvez o tal de Alexandre estivesse certo e que vocês estivessem sendo
obrigadas a abrir mão de tudo… — Ele parou de falar, e eu sabia que nós dois estávamos noslembrando da espreguiçadeira.
— Então por que você não dormiu comigo quando eu pedi?
Ali estava, dito abertamente. Que importância tinha? Eu não me importava mais com o queele achava.
— Astrid, tudo que falei pra você naquela noite era absolutamente verdade.
Minha garganta e meus olhos começaram a arder, ou continuaram a arder, com aquelasensação constante de queimação que era quase uma segunda natureza agora.
— Tirando o fato de que você não gostava de mim. Estava sendo pago pra sair comigo.
— Eu gostava de você e estava sendo pago. Eu não poderia bancar aquele jantar todo sozinho!
— Ah, sim. Entendo. Está perdoado. — Olhei para o outro lado. — Seus cinco minutosacabaram.
— Não. Me escute! — Ele me segurou pelos ombros.
Olhei para as mãos dele e para o rosto. Meu sangue ferveu como se eu estivesse caçando,e o ar ficou tomado de fogo e inundação. Talvez fosse o chifre da fonte. Não havia unicórniospor perto.
Eu me soltei das mãos dele.
— Toque em mim de novo e arranco seus braços.
Meu próprio choque se refletiu no rosto dele no momento em que falei. O quanto eu tinhame tornado sedenta por sangue? Passei os braços ao redor do corpo, para o bem de todos.
Ele retomou o assunto.
— Achei tudo incrivelmente estranho, vale ressaltar. Quero dizer, todas as vezes em queeu estava com você, era mais fácil esquecer como aquilo tudo era esquisito. Só pensava emvocê.
Só pensava em você. Meus ossos começaram a doer.
— Mas, quando estávamos na escola, ou quando as coisas que você dizia não faziam muitosentido, eu não conseguia afastar as desconfianças.
— É a coisa mais inteligente que você disse até agora.
— Sabe... Freiras de Controle de Animais Selvagens? — Ele deu alguns passos para tráse enfiou as mãos nos bolsos.
Eu me perguntei se não teria sido para ajudá-lo a resistir ao impulso de esticar os braçosem minha direção. Meu corpo todo formigava nos pontos onde nossa pele tinha se tocado. Eu
desejava que ele nunca tivesse encostado em mim, desejava que minha última lembrança docorpo de Giovanni fosse de quando ele colocou a mão no meu coração.
— Comecei a achar que essa coisa toda era uma espécie de armação, um enorme golpeque éramos jovens demais para compreender. Não se recebe dinheiro pra sair com beldad…garotas como vocês. É bizarro.
Concordo.
— Só que, semana passada, tudo ficou ainda mais estranho. Era Seth que sempre cuidavade tudo, ligava pro cara, recebia o dinheiro, tudo. Ele voltou dizendo que Alexandre contouque era a última oportunidade. Vocês duas iam fazer os votos.
— Mas, Giovanni, você sabia que eu não faria… — Mordi o lábio para não dizer mais.
Ele sabia o quanto eu queria ir embora. Sabia que a única coisa que me prendia a Roma era ofato de que ele estava aqui. Ele sabia porque eu falei para ele, depois o beijei como se elefosse o último homem do planeta.
O olhar de Giovanni me queimava, e ele ficou em silêncio e imóvel, com as mãos enfiadas no bolso, de pé a uma distância do tamanho da fonte e me atraindo com a força de uma estrela
implodindo.
Depois de um minuto, ele voltou a falar, devagar, com grande dificuldade.
— Ele nos disse que o convento era formado por um bando de malucos que achavam quetinham poderes especiais pra caçar unicórnios. Unicórnios!
Isso sim parecia coisa de tio John.
— Ele disse que tínhamos só uma chance agora. Se vocês fizessem sexo, não poderiamentrar. Nisso eu acreditei: você tinha dito a mesma coisa em Trastevere naquela noite. Mas elequeria que nós… fôssemos até o fim. Que dormíssemos com vocês duas.
— Aposto que você lamentou ter perdido sua chance.
Giovanni não caiu na armadilha.
— Ele ofereceu a cada um de nós dois dez mil euros por… provas de que tínhamosdormido com vocês.
Sufoquei um gritinho.
Giovanni apertou os punhos contra a testa.
— Eu… fiquei… Eu fiquei horrorizado. Ali estava eu, tentando ajeitar minha vida, e sentique, de alguma forma, acabei ficando preso a uma espécie de operação secreta. Como se, a
qualquer segundo, a Interpol fosse aparecer e nos prender por… não sei o quê. Organizar umgrupo de garotas de programa, sei lá. Fiquei morrendo de medo. — Ele fez uma pausa. — MasSeth estava animado. Ele achava que vocês… — Ele parou de falar. — Eu contei a ele,entende? Sobre aquela noite.
— Ele achou que seria fácil — completei, com o tom de voz neutro.
Giovanni concordou, sem olhar para mim. Eu não o culpava: tudo o que ele veria nos meusolhos seria vontade de matar.
— Mas Phil tinha dito pra ele que não iria até o fim. E quando me recusei a me envolvercom você de novo, ele até… — Ele parou de falar, mas eu consegui entender o que ele queria
dizer também.
Seth cogitou a possibilidade de trocar de garota com Giovanni.
— Ele me embebedou e tentou me convencer a ir adiante com aquilo. Ficou falando que eupoderia pagar um ano de faculdade com o dinheiro e que não estávamos fazendo nada de
errado se, de toda forma, você e eu queríamos fazer sexo…
Devo ter feito um ruído de surpresa alto o bastante para que ele ouvisse mesmo com obarulho da fonte, porque Giovanni se encolheu, com os olhos ainda baixos, de forma que eu
não pude interpretar o que se passava em seu rosto. Será que era essa a verdade? Será que oque ele sentia era tão forte? Ele não tinha se aproximado nem um centímetro, mas minha peleparecia queimar nas partes viradas para ele, como se eu estivesse perto demais de uma fogueira. Eu queria chorar, gritar. Queria jogar coisas nele. E, mais do que tudo, queria queele me tocasse de novo.
Mas eu não podia. Prendi a respiração até ter certeza de que podia confiar o suficiente naminha voz para dizer:
— E foi aí que você decidiu que não queria me ver.
— Eu estava com tanta raiva de você — disse Giovanni. — Achei que tudo que você tinhame contado era uma enorme mentira, uma grande armação. Afinal, unicórnios?
Ele me olhou nos olhos naquele momento, e minha determinação falhou. Eu me esforceipara impedir que meu queixo tremesse. É, unicórnios.
— Essa foi a última coisa que aconteceu. Seth saiu com você e Phil, e eu fiquei em casa. Etenho estudado muito, então não tive chance de estar com ele muitas vezes nos últimos dias. Eentão, a polícia apareceu.
— E você achou que era um golpe? — debochei.
— Eu não fazia ideia do que era, mas achei que deveria tentar falar com você e Phil maisuma vez, porque vocês sempre pareceram pessoas legais, independentemente do que poderiaestar acontecendo. — Ele olhou para o Claustro. — Mas… tem um unicórnio gigante alidentro.
— Tem.
— E você disse que Seth… que Seth e Phil… — Ele não parecia conseguir se forçar adizer. Eu entendia a sensação. Era inconcebível e era verdade.
— Sim.
— E você não sabe quem era o cara que nos pagou?
— Você vai ter de me oferecer mais alguma coisa além de “a aparência dele era normal”pra que eu possa respondê-lo.
Eu só sabia que não era tio John. Ele jamais chegaria a tomar atitudes extremas tãonojentas. Se ele nos quisesse fora daquilo, entraria pela porta da frente e nos arrastaria dali.
Eu o tinha visto fazer isso uma vez quando Phil estava em uma festa depois do horáriocombinado de ir embora.
Ele ergueu as mãos no ar, em um sinal de desistência.
— Não sei. Faz um tempo, e eu estava distraído. Eu achava que tinha visto um unicórniono… Meu Deus, aquilo foi real, não foi?
— Foi.
— E você… o atacou?
— E Alexandre? — perguntei.
— Ele era mais velho. Cabelo branco. Olhos muito claros.
Estreitei os olhos e tentei:
— Alto, elegante, talvez usando um terno?
— Meio europeu clássico, eu acho. É — confirmou Giovanni.
— Ah, Deus. Marten.
— Quem é esse?
— Nosso patrocinador.
Mas por que ele iria querer se livrar de Phil e de mim? Não fazia sentido. Ele só falava doquanto as Llewelyn eram ótimas caçadoras, de como tínhamos capacidades fantásticas e muitoespeciais, no quanto daríamos orgulho às nossas ancestrais. Ele gostava de nós. Queria que
fôssemos caçadoras!
Giovanni estava esperando que eu continuasse a falar, ainda a uma distância segura, aindacom as mãos enfiadas nos bolsos, mas ligeiramente inclinado em minha direção. Eu tambémestava inclinada na direção dele. Endireitei minha postura.
— Tudo bem — falei. — Onde você se encontrou com esse Alexandre? Onde ele deixavao dinheiro?
Giovanni balançou a cabeça.
— Seth que cuidou de tudo.
— Você não sabe nada sobre isso?
— Eu não queria saber. Era tudo inconsistente.
— Mas você aceitou o dinheiro mesmo assim.
O silêncio pesou entre nós. Será que era mesmo Marten? Por que ele iria querer quefôssemos embora? E será que ele tinha alguma ideia de o que esse esqueminha dele tinha
colocado em risco?
— Quero deixar registrado que lamento ter aceitado. Sei que isso não significa nada pravocê agora.
— Você tem razão — menti, mas logo recuperei o controle. — Meu melhor palpite é queseu amigo, tendo… feito o que pediram a ele, foi buscar a recompensa. — Tremi. — Não faço
ideia de onde isso pode ser, mas podemos rastrear o paradeiro de Marten. Eu também gostaria
muito de ter as respostas para algumas perguntas. — Por exemplo, como ele ousa fazer talcoisa, quem ele acha que é e se quer mesmo encarar todas nós depois de nos ter ensinado ausar espadas, arcos e facas. — Vou perguntar a Neil quando ele voltar.
— Me pergunte agora.
Olhamos para a entrada e vimos Neil Bartoli ali de pé. Giovanni deu alguns passos paratrás.
— Neil, acho que você deveria ouvir isso. Este é Giovanni Cole. Ele é colega de Seth, ediz que os dois receberam dinheiro de Marten Jaeger durante todo o verão em troca de nos
tirar daqui.
Neil olhou para Giovanni como se ele fosse a sujeira da sola do sapato dele.
— Curioso. Quase tão curioso quanto o fato de que, quando cheguei ao escritório daGordian hoje, ele estava fechado. Ainda não consegui fazer contato com ninguém de lá, nem
com o próprio Marten.
— Não!
Neil confirmou com um breve aceno de cabeça, o semblante parecendo frustrado econtraído de preocupação.
— Não consigo explicar. Marten sempre esteve a distância de um telefonema, sempredisposto a comparecer nos momentos difíceis, a se envolver com a administração do
Claustro… E agora, tenho caçadoras feridas, uma caçadora que não pode mais caçar, umcorpo apodrecendo na rotunda… — Ele reparou na expressão de perplexidade no rosto deGiovanni. — Um corpo de unicórnio.
— É claro! — Giovanni deu um riso quase debochado.
Neil fez sinal para que eu me aproximasse.
— Venha, Astrid. Está claro que não temos informação nenhuma que esse jovem vá acharútil. Quando soubermos a localização do amigo dele, informaremos à polícia.
— Astrid. — A voz de Giovanni não era totalmente de apelo, mas sem uma formadefinida, como se ele nem mesmo soubesse o que queria me pedir. Eu entendia perfeitamente.
Me afastar dele foi o pior tipo de tortura.
Mas mesmo assim eu o fiz.

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