O que sou eu?

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Assim que saí da enfermaria pude sentir o vento fresco da floresta, apesar de não conseguir rastrear usando o olfato como o restante dos estudantes, eu conseguia sentir o cheiro da natureza, era como se eu fizesse parte de tudo e tudo fizesse parte de mim. Abaixei-me, coloquei as mãos na terra, senti a umidade entre meus dedos, fechei minhas mãos. Era um hábito que eu tinha sempre que "renascia", como se isso me desse mais força, mais coragem, mais determinação para enfrentar a morte mais uma vez.

Olhei para o centro de treinamento, os próprios estudantes o construíram, era algo que podia ser facilmente desmontado e montado novamente em outro local. Mais parecia um acampamento do que qualquer outra coisa. Apesar do meu tio Diego ser o responsável por aqui, a grande maioria segue a Bianca como uma líder, os lobisomens tendem a seguir os mais fortes. Nesse ponto são mais lobos do que humanos. Eu detestava tudo nela, seu cabelo loiro, seus olhos azuis e sua força faziam dela uma cópia da minha mãe. Somente seu temperamento a distinguia de uma verdadeira líder.

De repente começo a sentir uma dor forte em meu ombro direito, olho instintivamente para ver o que a causava e vejo garras de lobisomem perfurando a minha pele, me ponho de joelhos e grito de dor, minhas mãos tentam retirar as garras sem sucesso, o sangue escorria quente pelo meu braço.

- Pensei que tinha te mandado para o inferno dessa vez garota zumbi. – Disse Bianca atrás de mim, retirando as garras do meu ombro.

- Voltarei quantas vezes forem necessárias até te derrotar! – Consegui dizer, ainda com as mãos sobre o ferimento, tentando diminuir o sangramento.

- Não prometa algo que não possa cumprir. Desista de uma vez da academia, todos sabem que só está aqui por ser filha da Suprema.

Retirei a minha adaga com a mão esquerda e enfiei em seu ombro direito, fazendo um estrago semelhante ao meu. Bianca transformou-se parcialmente, algo que apenas os Licans de elite conseguiam fazer. Antes que nos atacássemos novamente, uma esfera caiu entre nós duas. Sabíamos exatamente o que era aquilo, uma granada com fragmentos de prata. Não tivemos tempo de reação, eu somente consegui proteger o meu rosto e logo estávamos sendo jogadas longe devido à forte explosão. Por um motivo que eu não entendo, a prata não me afeta, mas eu também não tenho a recuperação milagrosa do restante dos lobisomens, portanto nem eu e nem ela conseguíamos mais nos levantar.

- Vocês sabem que eu não permito brigas entre os estudantes! Eu sei que vocês duas acham que podem fazer o que bem entendem, mas isso aqui não é um clã e nem uma escolinha para crianças. Estamos em guerra! Este é um centro de treinamentos militar. Da próxima vez amarrarei as duas e darei de presente aos vampiros. – Eu ainda estava zonza e não conseguia ouvir direito, mas sabia que estava levando uma bronca.

- Tio, ela...

- Já sei! Não interessa quem começou! Não quero mais briga entre os estudantes. – Meu tio conseguia assumir uma cara bem aterrorizadora quando queria

Bianca já levantava-se, ela não via meu tio como um superior, mas precisava respeitá-lo devido a hierarquia militar. Apesar dos fragmentos de prata cravados em seu corpo, não pareceu demonstrar estar enfraquecida, seguiu direto para o seu dormitório após prestar continência militar perante seu superior.

- Precisava fazer isso tio? – Eu olhava para a minha roupa toda rasgada.

- Usei apenas uma pequena dessa vez! Annie, sabe que a Bianca é mais forte do que eu. Não sabe? Ela é a mais forte aqui neste momento.

- E eu a mais fraca! – Assenti.

- Isso mesmo! Não posso te proteger para sempre. Você precisa evitar esse tipo de situação. Peça desculpas para ela, façam amizade uma com a outra. Os nossos verdadeiros inimigos são os vampiros e os humanos. Precisamos ser uma equipe no campo de batalha. – Ele diz enquanto me ajudava a levantar. – Depois de retirar esses fragmentos na enfermaria, volte para o treinamento.

Percebi que não tinha andado nem dez metros da enfermaria e já estava voltando.

- Nada de sujeira na enfermaria, minha filha! – tia Anne dizia enquanto me conduzia para uma maca na entrada. Ela limpava cuidadosamente minhas feridas, ela era como se fosse a minha mãe, apesar de ser minha tia avó. Aparentava ter mais de sessenta anos, mas tinha uma energia fora do comum, nunca ficava parada no mesmo lugar, sempre procurando algo para fazer e seu olhar escondia um passado com muita dor e sofrimento, mesmo assim sempre estava sorrindo.

- Não é nada! A prata nem me afeta. – Eu disse.

- Mesmo não sabendo o porquê disso, você ainda tem um corpo de uma humana, não consegue se recuperar como o restante de nós. Sugiro que descanse por hoje.

- Não posso! Preciso melhorar cada vez mais! Quero superar a minha mãe!

- Ninguém pode ser igual a outra pessoa! Você é especial do jeito que é. Tenho certeza que sua força aparecerá quando for a hora. Não fique se comparando com sua mãe.

Eu não queria discutir com alguém que tinha tanta calma quanto ela, tomei um banho, enfaixei meus ferimentos e retornei para o treinamento.

Consegui perder todo o treinamento da manhã, me dirigi para o refeitório, nada mais do que uma tenda enorme com dezenas de mesas de madeira, do tipo desmontáveis. Eu podia notar que todos estavam me olhando, talvez perguntando-se se de fato eu era filha da Suprema. Eu sou totalmente diferente dela, meu cabelo é castanho, meus olhos são verdes e não azuis e não tenho nenhum de seus dons. Quem sabe pensavam que eu tinha morrido dessa vez. Os ignoro e pego o meu almoço. Posso ver a Bianca cercada por seus admiradores em uma mesa, sento-me no extremo oposto. Nunca almoço com a companhia de outro aluno, nunca tive um amigo aqui e sei que nunca terei, como se eu fosse de outra raça, um ser estranho.

O treinamento da tarde, como suspeitei tratava-se de combates corpo a corpo. Esse dia tinha como ficar pior? Para minha sorte não tive a Bianca como oponente dessa vez, mas sim um de seus fãs. Vestíamos uma roupa especial que continha vários botões de prata, diziam que precisávamos nos acostumar ao toque da prata para criarmos algum tipo de resistência. Pelo menos eu tinha essa vantagem em relação a eles.

- Vou acabar o que a Bianca começou, garota zumbi! – Dizia Igor, um garoto de quinze anos, mas que já possuía um corpo como o de um adulto.

- Quero ver tentar! – Rugi de volta. Eu sabia que era proibido transformar-se sem autorização, o que igualava as coisas para o meu lado.

Quando finalmente chegou a nossa vez de lutar, procurei estuda-lo, sabia que era mais rápida do que ele, mas não em meu estado atual. Ele conseguiu facilmente me acertar com seus socos potentes, depois de ser nocauteada por duas vezes eu me levantei novamente.

- Tem certeza que quer continuar? Vai morrer aqui nesta arena e não a deixarei voltar dessa vez! – Aquele moleque era muito arrogante.

Tentei lembrar das palavras de minha mãe, ela dizia que concentrava sua raiva, a controlava e via tudo vermelho. Enquanto eu pensava, ele me agarrou com as duas mãos jogando-me longe. Caí novamente, sentia muita raiva agora, abri meus olhos, não via nada vermelho, mas algo estava diferente, eu estava gostando dessa raiva, como se me alimentasse disso. Notei o meu adversário tentando me socar aproveitando-se de minha queda. Agarrei seu pulso com força, não sei porque ele começou a gritar, me levantei ainda segurando seu pulso, ele ajoelhou-se chorando. Quando soltei seu braço estava pegando fogo e o local que eu tinha segurado estava em carne viva.

Rapidamente o levaram para a enfermaria. Todos estavam tentando entender o que tinha acontecido. Eu também gostaria muito de saber.

Olhei para as minhas mãos, não tinha nada de errado. Bianca aproximou-se de mim com o olhar de raiva, nunca a tinha visto dessa forma

- Vou te matar! – Ela começou a transformar-se mas algo a deteve. Como se tivesse algo errado, ela me olhava nos olhos. Voltou ao normal e afastou-se - Vou te matar da próxima vez.

Não entendi nada, mas fiquei feliz em não ter que lutar com ela duas vezes no mesmo dia. O ódio ainda me consumia, eu nunca me senti com tanta energia assim antes.

Será que era essa a fonte de meu poder?

Já não sentia dor alguma, minhas feridas tinham sumido.

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