𝑷𝒓𝒐𝒍𝒐𝒈𝒖𝒆

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Em plenas dez da noite, todas as crianças do orfanato já estavam se preparando pra dormir.

-Não vai dormir agora? - perguntou, levemente apreensiva, a garota com quem eu dividia o quarto. Ela tinha cabelo castanho claro... ou loiro e era alta, mas eu nunca conseguia me lembrar o nome dela, não parecia relevante. "Não", murmurei em resposta. Ela apagou seu abajur.

-Boa noite... - diz no mesmo tom

A maioria das garotas procurava não me incomodar, mas eu sabia que elas me achavam uma idiota esnobe. Não dei muita atenção e continuei a contar o dinheiro, guardando em um envelope depois. O descaso foi eficiente visto que ouvi seu bufar pela falta de resposta. Então as tábuas velhas do piso rangeram com seus passos na direção contrária a minha, aparentemente em direção à cama. Esperei um pouco, até ouvir o remexer de lençóis.

Me certifiquei que ela estivesse dormindo antes de me levantar pra calçar os coturnos surrados e andei a passos leves até o velho guarda roupa no canto do quarto, iluminado apenas pela luz que atravessava as janelas e o abajur da escrivaninha ainda aceso. Abrindo a porta com cuidado para evitar um rangido, peguei o casaco forrado com pelinhos no capuz.

Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e o vesti. Apanhei a bolsa, pronta a alguns dias, no fundo do armário e a coloquei sobre um ombro, voltando à escrivaninha, tão silenciosa quanto antes para buscar o celular e o envelope com dinheiro. Assim que os apanhei, coloquei nos bolsos internos do casaco e fui até a porta abrindo da maneira mais delicada possível.

Todas as portas estavam fechadas e nenhum feixe de luz escapava pelas frestas. Todas pareciam estar dormindo. E o silêncio absoluto acompanhado pelo breu no corredor dos dormitórios, foram a confirmação disso. Sem aparentes obstáculos, percorri o corredor e desci as escadas silenciosamente. O toque suave no corrimão e o olhar perdido que mirava o céu noturno através das grandes janelas vitorianas que cercavam o salão principal.

Estava nublado e parecia frio lá fora. Não tinham estrelas mas a lua, apesar da névoa, brilhava forte, se mostrando por entre as nuvens. O vento forte balançava as arvores a ponto dos galhos ricochetearem as janelas, causando estalos irritantes.

Respirei fundo após o último degrau e observei o grande salão uma ultima vez. Não foi possível evitar a nostalgia. As grandes e pesadas portas esculpidas em carvalho escuro, o piso em ladrilhos e a lareira recém apagada abaixo do suntuoso retrato da madre fundadora da instituição. Eu tinha passado muito tempo ali desde minha chegada, aos sete anos de idade.

Quando minha mãe faleceu já não tínhamos mais parentes vivos. Talvez ela tivesse uma meia irmã nas Filipinas, onde nasceu. Mas a assistência social não encontrou ninguém que estivesse realmente disposto a assumir minha guarda. Então fui encaminhada para o Orfanato Feminino Saint Claire, na Filadélfia.

Já sobre meu pai, eu jamais ouvi falar sobre como ele era ou o que fazia. E assim como eu, tudo o que minha mãe sabia era que tinha sido abandonada enquanto ainda mal podia ser chamada de feto e que o pai era alemão. Sempre estivemos sozinhas já que a mãe dela veio a falecer antes que eu viesse ao mundo.

Nos mudávamos e viajávamos muito por conta do trabalho dela. Deixámos a Califórnia pouco tempo depois do meu nascimento e passamos todo o tempo que tivemos juntas de estado em estado, percorrendo o país quase inteiro. Nunca foi difícil, ela sempre fez com que tudo parecesse uma aventura e eu nunca tive muitos amigos de quem sentir falta.

E não precisava, ela costumava me levar pro trabalho e roubava toda a minha atenção com a caça aos fósseis e os passeios aos museus. Era muito divertido aprender sobre dinossauros, estrelas e porcelanas asiáticas. Não éramos nada nem perto de ricas, mas eu nunca senti falta de nada. Tínhamos tudo o que precisávamos.

No começo foi difícil. E no resto do tempo também, eu odiava aquele lugar. As crianças eram irritantes, as freiras tinham ódio demais pra quem pregava amor ao próximo e eu odiava rezar. Sentia falta dela todo dia. Eu não entendia muitas coisas, mas sabia que minha mãe não ia voltar e que eu já era bem grandinha pra ser adotada.

Foi assim que eu acabei sozinha. Nenhuma das crianças conseguia acompanhar meu raciocínio ou o humor inconstante. Isso fez elas se afastarem de mim, me achavam intimidadora, grossa. Eu realmente desprezava qualquer coisa não adicionasse nada ao meu conhecimento e nunca tive muito filtro então sempre acabava irritando alguma das mais velhas por que elas pareciam "bonobos* e iam acabar pegando uma doença se beijassem todos os garotos de quem falavam" ou fazendo as mais novas chorarem por que Papai Noel e fada do dente não existem.

Sendo assim meu tempo no orfanato foi divido entre passar meus dias na pequena biblioteca, lendo, ou no salão principal, perto da lareira, lendo. Vez ou outra eu brincava de montar e desmontar eletrodomésticos ou o computador da diretora. O que me rendeu uns bons castigos e alguns apagões no orfanato. Mas era melhor que brincar de amarelinha com as outras. Nunca entendi o sentido de ficar pulando naqueles quadrados coloridos.

Um leve estalo me acordou do meu devaneio. Um galho batendo na janela. Percebi que estava me demorando demais e me apressei em chegar à sala da diretora. Quando entrei o calafrio veio junto. A sala era medonha e me trazia lampejos nada agradáveis de experiências vivenciadas ali.

-Eu realmente não vou sentir falta desse lugar - passei a mão na testa mirando os estofados de couro após largar a carta em cima da mesa - eu vou conseguir me virar... - sussurrei apertando a alça da bolsa e fui em direção à janela.

Era a única sala em que as janelas não ficavam trancadas então consegui abrir sem muito esforço. Passei uma perna e depois a outra. A sala era no térreo, e dava direto no jardim lateral, nem precisei pular. Caminhei até o portão da frente, atravessando o pátio e passando pela fonte.

Escalei a grade até conseguir me apoiar no muro alto que cercava a propriedade. Com as duas mãos me segurei e subi no muro onde me sentei e joguei a bolsa na calçada. Me apoiei pra subir na árvore do lado de fora por onde desci sem grandes problemas, dando um pequeno pulo no fim da descida.

Caí de pé e respirei fundo o ar gelado. Olhei em volta e vi as luzes fracas dos postes na rua falharem. Comecei a andar sem direção nenhuma e de uma maneira completamente aleatória pensando em entrar no primeiro ônibus que passasse por ali. Passei pela igreja, praça, mercado.

Aquela noite de outono era uma das mais frias que eu já tinha presenciado, meu peito ardia e minhas mãos doíam, por que eu nem sequer tinha pensado em por luvas. Mas não fazia tanta diferença já que elas eram finas e estavam velhas e rasgadas.

Pus as mãos nos bolsos do casaco enquanto praguejava e andei por mais um tempo até avistar a estação de trem da cidade. Pensei se aquela realmente era a escolha certa a se fazer e decidi, depois de comprar o bilhete, que realmente entraria no primeiro que passasse.

Fosse pra cidade grande ou qualquer uma no interior eu só queria me ver longe da Filadélfia, do orfanato Saint Claire e de qualquer rosto familiar, ser independente.

As memórias que fiz naquele lugar não eram boas, e as não-amizades que deixei pra trás não me importavam. Eu só queria um diploma do ensino médio e um emprego que me alimentasse até que alguma faculdade fosse generosa o bastante pra me aceitar sem pagamento.

Esperei, sentada no banquinho, até que o primeiro trem parasse, às 11:40 da noite. Enchi o peito de ar e apertei a alça da bolsa, ciente de que daria o primeiro passo pra minha liberdade em segundos. A placa reluzente à vista dos passageiros que aguardavam embarque dizia o destino que o esse seguia. O meu destino.

"QUEEN'S, NEW YORK"

- Então é pra lá que eu vou... - murmurei enquanto o trem parava e abriam-se as portas.

E eu entrei.

Elektra - AvengersOnde histórias criam vida. Descubra agora