Conto Nove
VOLTANDO PARA CASA
Vitor Maciel Goncalves
"Para meu pai-não-pai, com amor."
Evolução - 1996
Acho que uma das primeiras memórias que tenho é de uma coisa engraçada, boba de verdade. Lembro das minhas mãozinhas pequenas pegando uma das chaves de fenda do meu pai para cutucar os tocos das árvores perto de casa, como se os estivesse consertando, ou instalando melhorias. Também ali por perto, lembro-me das minhas tardes solitárias caçando passarinhos com meu estilingue que eu mesmo fiz! Era um sentimento inexplicável de calma e serenidade, como se estivesse fundido com a natureza. Essas são lembranças tão nítidas em minha mente que quase sinto o cheiro do molhado do tronco recém banhado pela chuva, aquele cheiro tão gostoso de mato, o gelado subindo pelos meus pezinhos descalços no meio do sítio. Bons, mas também tempestuosos tempos.
Toda infância é boa, dizem. Não são poucas as pessoas que olham para traz com um sentimento de nostalgia e balbuciam 'Nossa, como aquela era uma época boa, de inocência!'. Concordo que a inocência é boa, e digo ainda que é inclusive essa a inocência que nos falta enquanto adultos para uma vida mais plena. Somos todos tão cheios de obrigações, o tempo todo correndo pra lá e pra cá, que esquecemos de usufruir do olhar tão necessário e fundamental da inocência. Esse sentimento tão doce que nos faz ver o mundo como se fosse a primeira vez, nos fazendo tirar proveito total de todos os momentos. Enfim, sobre o que estava falando mesmo? Ah, minha boa e conturbada infância.
O que não ficou claro no que foi há pouco dito é que a chave de fenda era pega sem que ninguém soubesse, pois se meu pai descobrisse, o pau torava. Meu pai sempre foi daqueles metódicos e bastante rígidos. Seguia suas regras enquanto criança porque não gostava de apanhar. Além disso, nem pensar em sair para brincar com meus amigos quando bem entendesse... Aos oito já trabalhava na sua oficina de carros, ocupando grande parte das minhas tardes livres. Felizmente, eu até gostava de fazer aquilo. Acho que por isso não gosto de futebol até hoje. Gosto mesmo é de tecnologia.
Aos quinze anos embarquei um dia em um ônibus que saía da minha cidade para a cidade grande mais próxima para realizar um sonho. Desembarquei no terminal rodoviário e andei até a loja de departamento Mesbla, sendo que a cada passo o coração palpitava mais forte. Fechando os olhos agora consigo sentir aquele cheiro característico de plástico novo que exalava do meu TK2000 então recém comprado. Era uma época onde se ligava o computador na TV e que os softwares eram gravados em fitas cassete. Infelizmente, o meu não gravava os programas tão bem no cassete e, muitas vezes, ao desligar a máquina, tinha que escrever as linhas de comando todas novamente. Bons tempos.
Desde que saí de casa, aos meus dezessete anos, foquei sempre meu trabalho no setor de tecnologia de um banco estatal. Lembro até que mesmo trabalhando na mesma cidade que minha família vivia, morava no alojamento da instituição como menor aprendiz. Ia para casa apenas para comer e para que às vezes minha querida mãe lavasse minhas roupas. Como, mesmo durante a minha adolescência, a rigidez e severidade de meu pai não haviam nem um pouco amenizado, fato esse que me impedia de sair e me divertir com meus amigos, não via a hora de sair de casa. Na primeira oportunidade eu saí e claro, na mesma cidade minúscula que nasci eu não ficaria indefinidamente e, pouco tempo depois, já me mudei para uma cidade maior aqui no interior do Paraná e aquela que moro até hoje: Londrina.
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Mostra Ecos 6ª edição
Short StoryA Ecos 6 é uma nova Ecos. Mudar, tentar ir além, buscar o diferente, esta é a única rotina a ser seguida pelo escritor. Mesmo que estas mudanças pareçam simples na primeira leitura, elas partem de tudo aquilo que percebemos que mudou em cada um...