Conto Dez
ABALOS DE FINAL DE ANO II
Fábio Guastaferro
A noite foi deliciosa. Acordei bem disposto. Quando vi que ainda era cedo demais para levantar resolvi ficar um pouco mais na cama. Ela sempre acorda depois de mim, mas hoje já tinha se levantado quando eu despertei. Ainda assim resolvi ficar.
O barulho do chuveiro no banheiro ao lado começava a embalar meus pensamentos, ora pensava no início da noite passada, que começou meio fria, mas esquentou bastante sob os lençóis, ora na possibilidade de me levantar e acompanhá-la no banho. Possivelmente não tomaríamos só banho, o que acabaria por atrasar a nós dois.
Ainda se enxugando ela disse, meio apressada, que não iria me esperar, que tinha um compromisso e sairia mais cedo. O que justificava ter se levantado primeiro, mas que eu poderia ficar tranquilo e que poderia sair na hora que eu quisesse. Realmente ainda era muito cedo para eu pegar serviço, e a proposta de poder ficar mais um pouco me foi um tanto tentadora.
Ainda sugeri a ela que me fizesse um pouco de companhia, principalmente no calor da cama, ainda mais que eu me mostrava bem animado à agradá-la. Ideia que ela refutou com pesar, insistindo que corria o risco de se atrasar para o já mencionado compromisso. Assim voltei à proposta de ficar mais um pouco, talvez cochilar, talvez levantar e tomar um banho mais tranquilo, e fazer um desjejum mais calmo.
Mesmo tentadora, ponderei a possibilidade de ficar. Poucas vezes eu havia passado a noite com ela, e sempre era o primeiro a sair. Nunca tinha ficado sozinho naquele tipo de habitação, e confesso que mesmo com ela, me sentia pouco à vontade. Por mais que ela dissesse que não, me sentia sempre vigiado. Segundo ela, todas as câmeras daquele setor se desligavam durante um período do dia, geralmente era o período que eu estava lá.
Sabia que eu era proibido de estar naquele setor da cidade. A verdade é que estive poucas vezes neste tipo de moradia, conheço muito pouco seu funcionamento, sem contar que se eu for pego ali, provavelmente seria jogado nas areias, ou pior, seria drenado e transformado em comida.
Desde que eclodiu a crise de comida, diversas pessoas tem alimentado outras com sua própria carne. Começou com a população carcerária. Os presos alimentavam a si mesmos, com partes de seus corpos e por fim, com seus corpos inteiros. Quando a crise piorou esse tipo de "comida" se estendeu ao resto da população.
Logo a densidade demográfica nos presídios caiu vertiginosamente e claro, novos crimes foram criados, já que cadeia virou sinônimo de fazenda, a ideia era sempre aumentar o rebanho, ou pelo menos mantê-lo. Ainda bem que criaram outros tipos de comida. As comidas sintéticas, feitas a base de proteínas e plástico. A comodidade é que dá para baixar pela rede e imprimir em uma impressora 3D. O ruim são os temperos, o que dá gosto a estes pedaços de plástico.
Insisti mais uma vez que ela se deitasse comigo, nem que fosse para uma rapidinha, mas logo desisti depois que ela colocou o escafandro. Despressurizar aquele tipo de equipamento dava um trabalhão danado, sem contar que ela iria desperdiçar o gás de pressão. Relaxei com a possibilidade de ficar, e concordei, ficaria mais um pouco, até chegar a minha hora de partir.
Após algumas instruções de como regular a filtragem da água do chuveiro, a caixa sanitária, as trancas da porta e a saída da garagem, ela partiu. Claro que não prestei muita atenção já que muitas das coisas eu já a tinha visto fazendo antes.
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Mostra Ecos 6ª edição
Короткий рассказA Ecos 6 é uma nova Ecos. Mudar, tentar ir além, buscar o diferente, esta é a única rotina a ser seguida pelo escritor. Mesmo que estas mudanças pareçam simples na primeira leitura, elas partem de tudo aquilo que percebemos que mudou em cada um...