08 - Sorvete

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Quando você está conversando com alguém e esse diz que vai "matar a sede", "matar a fome", "matar aquele desgraçado por ter esquecido nosso aniversário de casamento" e afins, geralmente leva tudo como como uma ameaça sem fundamento e sequer imagina que ela vá transformar as palavras em ações, não é?

Eu, como boa parte de vocês que estão aqui lendo estas palavras devem achar isso, pelo menos eu espero.

Agora, quando a pessoa diz que vai literalmente "matar outra", com a intenção de realmente fazer isso, temos que ficar atentos sobre isso, então, apenas me ponho no papel da garota que está ouvindo o relato da Nirvana sobre o que está acontecendo, na direção da sala dos professores e pingando todo o caminho.

Como a forma de falar da Nirvana é bem rápida e ela estava praticamente sussurrando, pois estávamos passando pelos corredores onde qualquer um podia ouvir, pude decifrar apenas isso de toda a história:

"Uma aluna morreu! Não apenas uma aluna, mas sim a melhor aluna que esta escola já teve. Seu nome era Amélia. Ela foi encontrada morta na sala de música pelo faxineiro ao final do dia. Nenhum aluno sabe ao certo como aconteceu, entretanto, todos sabem que ela deixou uma mensagem no quadro da sala, alguma coisa que queria que outros soubessem.

Essa mensagem foi vista por alguns alunos que estavam de castigo fazendo atividades na escola, mas ninguém sabe ao certo quem são. Os professores e outros funcionários receberam ultimatos para sequer mencionar sobre esse ocorrido (motivo pelo qual a Nirvana estava sussurrando tudo isso pra mim, pois caso alguém nos pegue comentando pode ser suspenso), além de todos parecerem ignorar qualquer coisa relacionada a isso. "

- O que vocês fazem aqui, não deveriam estar em sala? –, pergunta uma mulher alta, muito alta, usando óculos com lentes bem grossas, de cabelo curto e segurando uma pasta cheia de papéis. Meus pensamentos somem rapidamente pelo susto que levo ao ouvir sua voz grossa, que aliada à sua estatura, cria uma imagem de alguém que deva ser temida.

Pelo meu primeiro dia nessa escola já estar se tornando um conto da Agatha Christie, cheio de mistérios, personagens macabros e morte suspeitas é até natural que você fique receoso ao encontrar alguém como essa professora, que descubro se chamar "Senhora Cinza" (segundo palavras da Nirvana), parada no corredor.

Não sei se vou me habituar a ter um segundo semestre cheio de gente estranha me rodeando pelos cantos. Minha vida acadêmica não é nenhum pouco tranquila como pensei ser.

- Estamos indo até a sala dos professores encontrar algo para a Novata usar. Ela se molhou feio usando o banheiro daqui! -, diz Nirvana com um tom bem sério, que faria qualquer um acreditar nela. Penso que ela poderia ter inventado algo menos constrangedor pra mim mas deixo passar, afinal ela é minha guia aqui.

- Tudo bem. Mas não demorem. Sabem que o Diretor não gosta de alunos andando pelos corredores fora do horário de aula. Se precisarem de ajuda, estarei na Biblioteca. – E saiu movendo seu imenso corpo por um corredor até desaparecer de vista. Preciso mesmo de um mapa dessa escola, andar com um guia já está ficando ridículo.

Passamos por um outro corredor até chegar numa porta grande, com as inscrições "Sala dos Professores – Não entre sem permissão" em letras garrafais, de fácil compreensão até do mais cego dos alunos.

A sala é espaçosa, com várias bancadas e jeito de um escritório, muitas mesas e cada uma com papéis, algumas com pilhas de folhas, ao fundo tem uma televisão e uma mesinha com café, olhando para o lado direito vemos apenas alguns poucos seres: alguns sentados, outros deitados nos sofás e outros mexendo nos papéis de sua mesa.

- Podemos olhar na caixa de coisas perdidas, por favor, ó estimados donos do nosso saber? –, pergunta Nirvana com todo sarcasmo possível, fazendo os olhares de todos irem de encontro a nós. Não sei qual a intenção dela em fazer esse tipo de coisa mas conseguiu a atenção desejada, como se fossemos pessoas azuis no meio de um monte de gente amarela.

- O que você aprontou dessa vez, hein senhorita Martha? -, indaga um dos professores que estava sentado, segurando o copo de café e com cara de quem teve sua diversão matinal preferida interrompida. Os demais é claro devem ter perguntas mais cabulosas a fazer, mas parecem esperar a resposta da "Martha" para começar o interrogatório.

- Por favor, é "Nirvana" Senhor Jonas -. Ela responde envergonhadamente, mas posso notar uma fúria em seus olhos e fico feliz que ela não tenha um poder para explodir pessoas, senão agora teríamos dado adeus a um professor. Ele seria feito em pedacinhos neste exato momento. Dou graças que os poderes não fazem parte dessa realidade, infelizmente.

- É "Martha" até você completar sua maioridade e possa mudar seu nome, daí sim vamos poder conversar com esse nome de banda de rock sem problemas -, questiona o Professor Jonas, um homem alto, com corpo nada atlético, arrisco uns 43 anos, cabelos um pouco grisalhos e com rugas e uma expressão de quem já viu todo tipo de alunos nessa vida, até uma suicida e uma revoltada.

Deu para entender que os professores e os alunos da sala 7 têm uma rixa, praticamente uma guerra, o que não é nada bom para uma garota que acabou de entrar nessa escola. Ir pro meio do fogo cruzado entre eles pode me render alguns tiros e no momento, quero menos disso o possível.

Mas como posso ficar invisível em uma turma que chama tanta atenção assim? Será que ainda posso mudar de sala? Por que fui justamente cair nessa maldita sala de maníacos? Tantas questões passam por minha mente nesse instante e o pior é que elas estão se acumulando cada vez mais.

Quase cometo uma tremenda besteira, pois enquanto estava em meus pensamentos, chamei a Nirvana de Martha. Bem, quase chamei. Parei no instante certo em que estávamos indo para uma pequena sala do lado esquerdo, com uma placa com os dizeres "Depósito" em um vermelho forte.

Nem quero imaginar o que ela faria comigo caso eu dissesse o nome real dela, além do mais, sei muito bem como é querer guardar segredos. Descobrir que o nome dela não é Nirvana sequer a fez se sentir envergonhada, então, resolvo continuar com esse nome ao me referir a ela, e sinceramente, a moça tem mais cara de Nirvana do que de Martha!

Adentramos a pequena sala cheia de caixas, coisas sujas e cheias de mofo. As aranhas e traças devem brigar por espaço aqui, tamanha sujeira nesse cômodo. Nem dá para acreditar que os professores deixam essa sala nesse estado, sendo que essa escola parece tão primorosa com organização e limpeza.

Há várias caixas com escritos como "Achados no dia XX", "Itens encontrados em XX" etc. Como se tudo aquilo fosse um enorme museu de restos de alunos, deixados em tantas ocasiões e lugares na escola. Enquanto Nirvana busca encontrar algum trapo que sirva no meu corpo magrelo, vejo uns livros e cadernos antigos.

Mal posso falar quando encontro um caderno com acapa cinza, capa dura, o nome da dona bem pequeno, numa letra tipicamentefeminina, como se feito com toda a delicadeza: "Amélia S. – sala 7, 1º ano 3".

Os Doces Pensamentos de uma Amarga SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora