IV - A rolha

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A equipe do restaurante ia à uma vinícola fazer degustação para elaborar a nova carta de vinhos da casa, o chef Pierre mudava o cardápio a cada dois meses. Terminaram o expediente mais cedo e depois de organizarem tudo entraram na van. Flora foi na frente com Pierre. Todos os outros estavam distraídos conversando sobre os clientes mais excêntricos que apareceram por lá nos últimos dias. –Lembram daquela mulher que o noivo fez uma surpresa colocando o anel dentro da codorna? Disse Jean estridente, gesticulando com as mãos na garganta. –Ele já queria a parte do "até que a morte nos separe." Disse Louis gargalhando. Lá na frente Flora tentava convencer Pierre de que ele precisa sair mais com as crianças. –Tem uma cafeteira perto de onde eu moro que é ótima, aposto que a Shopie ia adorar. propôs, sorrindo e não esperando resposta. –Domingo que vem, de manhã, quero todos os três na minha casa, ouviu? Ele a encarou carrancudo e sorriu. Meia hora depois chegaram a uma estradinha de terra, um mundo de uvas completando toda a vista, as melhores do mundo estavam ali naquele lugar simples, que provavelmente era herança de família como acontece com propriedades assim. Avistaram mais a frente uma grande estufa, saíram da van e o dono da vinícola e sua família estavam a espera. Pierre abraçou fortemente o amigo de tantos anos Laurent Rousseau, cumprimentou sua esposa e seu filho mais velho. –Onde está o Vincent, não me diga que nos abandonou ? Perguntou sorrindo enquanto apresentava-lhe seus funcionários. –Está lá dentro preparando as coisas. Falou apertando a mão de todos. –E essa aqui é Flora, é como uma segunda filha. Pondo os braços envolta do ombro dela, Laurent cumprimentou a com um abraço. –Pierre me falou muito sobre você. –Não acredite em tudo que ele disser. Proferiu sorrindo e pondo a cabeça no ombro de Pierre.

A estufa era enorme, em todos os lados haviam barris de carvalho com vinhos sendo amadurecidos, o cheiro amadeirado era incrível e mais ao fundo ficava a adega, um baú repleto de tesouros. Alguns eram como moedas antigas que aumenta de valor a medida que envelheciam. Entre a adega havia uma mesa centralizada de madeira reciclável feita a partir dos barris de carvalho descartados, estava disposto em cima taças, jarras com água e alguns tipos de queijos que serviam para limpar o paladar. Havia um homem virado de costas, estava no fundo escolhendo um dos vinhos para iniciar a cerimônia de degustação. Flora imaginou que fosse o outro filho do casal de proprietários. –Vincent, venha cá cumprimentar nossos convidados! Chamou animadamente. Eis que ele que ele se vira, de cara Flora não o reconheceu, estava com uma calça jeans e um casaco de tricô verde lodo. A cada passo que ele dá Flora tem a sensação de que já o vira antes. Vincent chega perto o suficiente para vê-la e logo a reconhece. Com a dentadura perfeitamente branca e brilhante aberta em um largo sorriso abraça Pierre. –Como você cresceu garoto! Falou dando-lhe um beijo de cada lado do rosto. –Deixa-me lhe apresentar meus funcionários. Se cumprimentaram. Mas Vincent quase não conseguia desviar o olhar de Flora. Que coincidência constrangedora, pensou ela. Naquele momento seria muito conveniente ser invisível. –E essa aqui é Flora. Vincent a fitou nos olhos com um sorriso no canto dos lábios, e ela segurou seu olhar, e estende-lhe a mão para comprimenta-lo, ele a segura e leva a boca sua mão, fitando-a. Ela fica mais vermelha que um camarão. E então ele fala: –Já nos conhecemos. Vamos a mesma cafeteira, infelizmente ainda não tive o prazer de falar-lhe qualquer palavra. As palavras saíram rápido, pareciam estar presas a um canhão. –Que maravilha, terá essa oportunidade agora mesmo. Pierre falou feliz e surpreso pelo acontecimento. Mas Flora estava completamente muda, e pretendia continuar assim.

Foram servidas as primeiras taças, era um Cabernet Sauvignon conhecida como a rainha tinta que tem uma característica bastante tânica devido a uva ter mais casca do que polpa e seus sabores ficam mais apurados quando amadurecidos em barris de carvalho. O ritual para a prova de vinho era o seguinte: Olhar o conteúdo da taça, cheirar, dar um gole e mastigá-lo antes de engolir, girar um pouco a taça, cheirar novamente, dar mais um gole e mastigá-lo por uns segundos e engolir. A necessidade desse processo é de liberar os aromas. –O que acha Louis. Perguntou Pierre. Louis além de maitre era sommelier. –Dá pra sentir que ainda é jovem, o teor tânico está bem visível. Falou. –O que acha Flora. Perguntou Louis, o chef a encarando. Os outros não eram tão entendidos do assunto quanto o chef, Louis e Flora. Estavam ali por o chef gostar que seus funcionários sintam-se parte da família e ficava contente de proporciona-los um pouco de diversão. –Vai ser difícil harmoniza-lo, prefiro um Sauvignon mais amadeirado. Disse Flora. –Tenho exatamente o que vocês precisam! Disse Laurent. Foi até o outro lado da adega e voltou com outra garrafa. Os outros observavam atentamente a conversa em silêncio enquanto apreciavam os vinhos, vez ou outra cochichavam alguma coisa. Pediu que Vincent tirasse a rolha, em um piscar de olhos ele estendeu a rolha na frente de Flora, ela a pegou de sua mão e podia sentir o calor que emanava de seus dedos quando os tocou leve e rapidamente, aquilo não durou nem dois segundos mais parecia uma eternidade e ela torceu para que ninguém notasse o olhar que ele a lançava a cada milésimo de segundo. Ela levou a rolha na altura do nariz e cheirou, podia notar a atenção de todos voltada para ela, queria sair correndo. O vinho já estava nas taças e novamente fizeram o ritual. –O que me diz querida? Perguntou Pierre. A cada pergunta e a cada resposta as cabeças curiosas iam de um lado para outro. –Sinto todas as notas que antes foram ofuscadas pelo tanino. Respondeu olhado para ele. Vincent a ouvia com os olhos cintilando. –Concordo, plenamente! Arrebatou Pierre. Louis assentiu com a cabeça. Provaram ainda um Pinot Noir, o gosto desta dependia do lugar em que fora produzida e esta tinha aromas frutados. E por fim provaram os vinhos brancos, que nada mais são do que uvas pretas sem a casca, o que lhe conferem aromas cítricos e refrescantes. O escolhido foi um Chardonnay a rainha branca. –Vocês fizeram ótimas escolhas. Afirmou André, o filho mais velho. Foi um prazer ter vocês aqui hoje. Disse Laurent com um sorriso no rosto. –Você e sua família fazem um trabalho extraordinário! Exclamou Pierre. Vincent estava de braços cruzados encostado em um lado da adega, a encarando descaradamente, ela fingia que não estava vendo. Todos elogiaram o lugar. –Este lugar é muito bonito, fiquei feliz por ter vindo. Disse Flora sorrindo. Quando ela falou Vincent abriu um sorriso enorme por pouco não se dissolveu de contentamento e prazer. –Nós quem ficamos felizes de conhecê-la, de conhecer todos. Falou Adele, a esposa. –Vocês não imaginam o esforço que eu fiz tentando traze-la aqui outras vezes. Pierre contou. Quando já haviam se despedido e estavam prestes a entrar na van... –Porque vocês não ficam para o jantar? Perguntou Vincent na esperança de trocar mais algumas palavras com ela. –Que idéia magnífica! Concordou Laurent. Eles se desculparam dizendo que precisavam ir pois o dia seguinte seria longo. Vincent lamentou, Flora comemorou aliviada. Mas Vincent prometeu que logo mais faria uma visita ao restaurante.

Foram cada um para suas respectivas casas, Pierre fez o jantar das crianças e colocou a mais nova para dormir, o mais velho relutante depois de uma pequena discussão foi para o quarto, com as luzes apagadas jogava vídeo game no volume mudo. Ele fez o que pode, pensou, sentou-se no sofá, pegou um retrato de sua esposa e o observou saudoso.

Flora estava exausta, e Eros, seu gato cinza de olhos amarelos roçava em suas pernas com seu rabo peludo balançando enquanto ela colocava sua ração. Tomou um banho relaxante, comeu alguma coisa e desabou na cama. Ela tentava dormir, mas só conseguia pensar naqueles olhos a encarando. "Não!" pensou ela. Colocou os fones de ouvido e esperou o deus do sono a encontrar.

Lá fora o vento forte soprava os galhos que por sua vez batiam nas janelas anunciando o outono. A lua cheia, o céu negro. Dias frios estavam por vir, depois só piorava com a chegada do inverno.

Flora e os Cogumelos ComestíveisWhere stories live. Discover now