O inverno castigava com o frio congelante os habitantes da cidade, mas indiscutivelmente era uma bela, fantástica estação, os rios gelados pareciam vidro com as bolhas de ar que não tiveram tempo de sair, petrificadas no tempo, depois derretiam lentamente, Flora se perguntava o que acontecia com os seres marinhos que habitavam esses rios e lagos, se eram petrificados junto com a agua ou se nadavam a procura de outro lar por uma determinada temporada, ou se eram adaptados geneticamente – o que era mais provável e real- e martelava na sua cabeça uma questão: Quando se faz gelo, em um recipiente qualquer, não se enche até a borda porquê depois que o gelo derrete a agua transborda. Imagina se acontecesse o mesmo? As cidades todas seriam afetadas e haveria uma catástrofe, talvez não tanto, mas as pessoas teriam que andar de galochas por um ou dois dias. E não, ela nunca pesquisara sobre esse assunto, sempre esquecia. O que era bom, gostava de imaginar as diversas possibilidades. "Enquanto não se escolhe, tudo permanece possível." Era o que dizia uma frase de um dos filmes preferidos dela. Mr. Nobody. O lugar era típico de filmes, ora essa, é a França, tudo parece uma cena de filme. Porém, cá para nós, o frio tornava tudo bem real. Flora sentia falta do calor do Brasil, aqui também fazia calor em algumas épocas, no entanto, não era o mesmo calor, o calor não se resumia apenas num sintoma físico, mas no amplo sentido da coisa, se é que me entende, explicarei melhor. O calor das pessoas, do vento que batia nos cabelos enquanto caminhava pela praia, dos abraços da família, da comida quente em dias quentes. Antes de sair de casa colocou comida para seu gato, Eros, e lhe deu uma bronca por ter arranhado o sofá mais cedo, exigindo comida, ele sempre fazia isso, o sofá já estava todo estragado. Pegou sua bolsa e trancou a porta. Para a sua surpresa... –Sr. Gerard, o senhor já voltou! Exclamou sorridente, deu-lhe um abraço apertado em seguida. Ele não tinha jeito, estava fumando um de seus cigarros, que foi indiscutivelmente proibido pelo médico. –Não minha filha, não se preocupe, eu perguntei se podia fumar ao menos esses elétricos. Ele permitiu, contanto que apenas uma vez ao dia, e eu ainda vou ter que voltar lá semana que vem. Meus braços estão parecendo uma peneira, olhe, olhe isso. Disse esticando os dois braços. Flora não passou a mão na cabeça, deu-lhe broncas bem severas. –O senhor não tem jeito mesmo, é muito teimoso. Disse por fim, sorrindo, ele era um amor de pessoa, não tinha como se aborrecer. E ela ainda lhe prometeu um bolo de frutas cristalizadas, era o seu preferido. Seguindo o dia foi para o restaurante, no caminho, passando pela praça avistou o senhor de óculos escuros e bengala que sempre via sentado sozinho no mesmo banco quando ia alimentar os pombos. Flora sabia que se parasse para cumprimentar iria se atrasar para o trabalho, mas mesmo assim o fez, ela não conseguia inquietar a curiosidade que aquele estranho senhor a causava. O dia estava congelando, nevoa encobria tudo. Como alguém ficaria ali naquele frio? Pensou. Quando parou o carro próximo a uma arvore congelada, desceu rapidamente. –Bom dia, o senhor está bem? Perguntou com um ar de preocupação e empatia. Nem mesmo os pombos famintos ousaram sair naquela manhã fria. Em meio a uma voz grave e rouca ele respondeu: -Bom dia, sim, estou bem. –Posso lhe fazer uma pergunta? Ele não parecia nada disposto a ter aquela conversa. Flora continuou sem esperar resposta. –O que o fez sair de casa numa manhã como essa? –Um velho não pode mais sentar em um banco sossegado sem que algum jovem venha importunar! Disse resmungando. E continuou. –Não tenho tempo para essas perguntas. Sou velho! Exclamou furioso e acendeu um charuto de madeira. –Não queria lhe incomodar. Peço perdão se o ofendi. Respondeu timidamente. –Não, não sinta pena de mim. Estou penas tomando um vento nessa minha cara enrugada e áspera. Não se preocupe se um velho como eu vai conseguir sobreviver a um dia frio como esse. Ora, como se eu não tivesse suportado tempos piores. Você não faz ideia menina. Agora que já respondi, você pode por gentileza me dar espaço? Levantou e saiu arrastando sua bengala na terra úmida. –Eu lhe acompanho até em casa, por favor. Disse ela ainda absorvendo tudo. –Me deixe em paz! Eu moro a um quarteirão daqui, me deixe. Sei muito bem encontrar o caminho. Flora não lhe deu ouvidos, não ia deixá-lo ir sozinho para casa. Não mesmo. Segurou seu braço direito, entrelaçando ao seu e o levou em direção ao seu carro, enquanto ele praguejava a atitude dela. Durante o curto trajeto até a sua casa, ele a amaldiçoou. Flora ria silenciosamente da situação em que se colocou, não sabia por que havia feito algo assim, era mais forte que ela, sentia que precisava fazer e fez. –A primeira casa amarela da próxima rua. -Menina impertinente! Onde já se viu, abordar um estranho desse jeito. –Seus pais não lhe deram modos? Onde já se viu. Agora como se não bastasse, só faltava passar a casa e me fazer ficar mais tempo nessa infortuna situação. Com os diabos! Flora só ouvia, não falou uma palavra até encontrar a casa amarela, que era a única casa amarela, não tinha como não ver. De um amarelo ovo estridente. –Aqui está. Disse parando o carro. –Não doeu, viu só? Disse ela rindo. –Era melhor engolir uma cereja do que ter esse desprazer. Falou abrindo a porta do carro. –Como alguém pode não gostar de cerejas? Isso podia ser considerado um crime. –Crime! Vamos falar sobre crime: Abordar um velho assim do nada pode ser considerado sequestro. Sua... Sua... Ram. Disse estupefato. Enquanto Flora o acompanhava até a porta de entrada –O senhor pode apenas me agradecer. –Mas vejam... Bateu a porta. Flora estava estagnada, queria saber mais sobre esse rabugento senhor. Bom... Isso fica para outro dia, pensou. Estava 15 minutos atrasada para o trabalho. A essa altura Pierre deve estar de cabelos em pé, imaginando algum acidente, como os que acontecem diariamente nos noticiários de tv, que alguém se atrasa para o trabalho e na verdade o carro bateu em uma arvore por estar com os pneus desgastados. Minutos depois ela chega ao Ambroise. –Bom dia Flora! Estávamos todos imaginando o que te acontecera. -Bom dia Louis! Ah, eu sinto muito, me atrasei e esqueci de avisar que iria demorar um pouco para chegar. Quando terminara de se vestir e entrou na cozinha Pierre já estava ligado a todo o vapor, seu rosto estava como um caqui, com as bochechas vermelhas e a testa repleta de gotículas de suor. Então Flora deu a mesma resposta de outrora para ele. E rapidamente tomou seu posto, ela tinha muita coisa para fazer. Enquanto separava, cortava e porcionava ela se sentiu muito feliz, naquele calor que se instaurou ali na cozinha, mesmo estando um frio das profundezas de todo o Polo Norte lá fora, ela se sentiu feliz.
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Flora e os Cogumelos Comestíveis
RomanceDeguste! Conheça Flora, uma jovem chef patissier que tem sonhos maiores que a própria Torre Eiffel, apesar de conviver com seus medos e descobertas. A cada esquina dessa história seja surpreendido por personagens de personalidades excêntricas e mar...