VI - O cheiro do silêncio

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Pelos corredores era possível sentir o cheiro de chocolate quente que saia pelas frechas da porta do apartamento de Flora. Das janelas era quase impossível notar rastros da tempestade do dia anterior, ah, o outono, com seu temperamento variável e instável! Flora sorriu ao ver pássaros namorando em meio às folhas caídas, teve a sensação de que este dia seria glorioso. Foi até o quarto onde as crianças estavam e abriu as cortinas, dando ao quarto um feche de luz. -Hora de levantar! Disse ela sacudindo Clement e em seguida Sophie. -Só mais cinco minutos, por favor! Disse Clement ainda de olhos fechados. -Nem mais um segundo, vamos, levanta! Disse puxando o edredom dele. Shopie já se espreguiçava, com os olhos semicerrados e os cabelos loiros bagunçados, os pés com meias rosas de bolinhas vermelhas não alcançavam o chão. -Que cheiro de chocolate quente, huum.! Disse a pequena sorridente, balançava os pés animadamente. Clement levantou-se de cara emburrada e Flora disse ironicamente, com um sorriso no rosto: -Cara feia para mim é fome! Sophie gargalhou, pulou da cama e abraçou Flora, Clement revirou os olhos e a beijou no rosto. Foram em direção a cozinha e tomaram o café da manhã, se arrumaram e saíram, foram de escada porque o elevador estava ocupado e estavam sem tempo. Flora os levaria a escola antes de ir trabalhar.

-Vamos ter que fazer molhos hoje, o estoque acabou! Marc, você pode ficar com o molho de tomate e o demiglace, por favor? -Tem aparas de carne no refrigerador. Disse Flora, entrando as pressas na cozinha. Acabara de voltar da câmara fria e faltava fazer muitas bases. -Claro, tem vinho tinto aberto? Disse ele. -Não temos, vá até Louis e peça algumas garrafas. Enquanto isso vou fazendo o bachamel. Marc saiu da cozinha e foi a procura de Louis, voltou com o que precisava e deu início às suas atividades. -Marc, abre essa lata para mim? Disse Flora, depois de um tempo em silêncio, estavam concentrados, o que era ótimo. -O que eu não faço por você? Disse ele sorrindo, ela sempre pedia coisas assim, nunca soube abrir latas com abridores de lata por mais que tentasse. -Obrigada! Sorriu. Parecia que o tempo estava voando, e ainda havia tanto a se fazer. E ela olhava o relógio a cada minuto, na verdade essa era mais uma mania, de estar sempre adiantada, seu celular quinze minutos adiantados era a prova disso, Flora realmente odiava atrasos. Lembrava-se de que precisava buscar as crianças na escola mais tarde, e que teria que fazer uma visita a Pierre. Deu-se conta, naquele mesmo instante, enquanto segurava em uma das mãos um saco de confeiteiro cheio de creme de pêra de que não havia ido a praça a alguns dias o que a entristecera, então decidiu ir hoje, mesmo estando atarefada até a ponta do dedo mindinho.

O restaurante seria aberto em menos de dez minutos, o circo estava prestes a fazer mais um show de malabarismo, as bocas do fogão em chamas, como o serviço era à lá carte os pratos eram montados pouco antes de serem servidos. No salão os clientes faziam seus pedidos, conversavam e quando menos esperavam seus pratos chegavam, se deliciavam com expressões de felicidade a cada garfada. Cada mesa contando uma história, um mundo todo, vidas sendo vividas bem ali naquele lugar, a comida mudava a vida daquelas pessoas e isso era fascinante. Havia mágica em cada canto dali. Um desses clientes era um escritor que sentava-se na mesma mesa todos os dias, primeiro pedia um chá e lia um livro diferente a cada dia, sentado, só ia embora quando acabava de ler e de comer a sobremesa, e era o primeiro a chegar. No meio do serviço um dos garçons vai avisar que um cliente desejou cumprimenta-la. -Diga a ele que o chef não está. Disse ela nervosa, detestava aparições públicas, por isso trabalhar em uma cozinha era perfeito, os bastidores de um filme não é uma das melhores partes? -O cliente disse com todas as letras que quer a sua presença. Disse ele com um sorriso maroto no rosto. Flora gostaria em muitas situações enfiar não só a cabeça mas o corpo todo dentro de um buraco. Aqui não é um zoológico, que comparação tola, ela era contra zoológicos. Decidira que teria de ir, não tinha para onde fugir. Deixou o calor da cozinha, retirou a cuca e o acompanhou até o salão devidamente lotado, não pôde acreditar no que os seus olhos estavam vendo, a respiração logo começara a falhar, passou as mãos suadas na cabeça na tentativa de arrumar o lenço que segurava seu cabelo preso em um coque bagunçado. Louis estava bem ao seu lado quando comentou: -É ele, lembra-se? Cutucou a com o cotovelo. Flora acenou com a cabeça, afirmando. Quando Vincent a viu levantou-se imediatamente mesmo ela ainda não tendo chegado a sua mesa, abriu um sorriso amistoso ao vê-la caminhar em sua direção, Flora o cumprimentou com um aperto de mão e sorriu, sobretudo estava nervosa demais para dizer qualquer palavra. Seus olhos a fitavam tão profundamente que chegava a ser cortante, estava fria como uma pedra de gelo que derretia sob olhar quente que ele a direcionava, no entanto não conseguia desviar, pareciam hipnotizados, ficaram encarando um ao outro por algum tempo quando Vincent resolveu falar, estava tão nervoso quanto ela, por pouco não engoliu todas as palavras. -Hum... Eu fiquei sabendo, que o Pierre vai ficar no hospital por uns dias... e que você vai ficar com as crianças. Falava em câmera lenta, fazendo pausas ao final de cada palavra, e por algum motivo que ele próprio desconhecia, não conseguia a olhar nos olhos e um sorriso discreto não lhe saia dos lábios. -Sim, daqui a dois dias ele está de volta. Pigarreou corando as bochechas. Ele prestava atenção a cada movimento que seus lábios davam, sem perceber mordeu de leve o lábio inferior. Mais alguns instantes de silêncio, seus olhos se encontraram profunda e delirantemente. O silêncio não mais era desconfortável, estava a vontade e ao mesmo tempo sentiam-se desconfortáveis com essa falta de desconforto. Seus corpos estavam inclinados, parecia que uma força invisível os puxava para mais perto, como um imã. -Se eu puder ajudar em alguma coisa ficarei satisfeito em fazê-lo. Disse a encarando, seus olhos azuis reluziam. -Não precisa se incomodar. Falou. -Será mais que um prazer! Sorriu. Ela continuou calada. -Me sugere alguma sobremesa especial? Completou ele. -Louis pode ajuda-lo com isso. Com um aceno discreto o chama. Vincent fica visualmente decepcionado, ela completa: -Tenho que ir pegar as crianças na escola, desculpe. Olhou para o relógio exuberante no centro do salão e já estava relativamente atrasada. -Posso levá-la se quiser. Louis os observava com atenção. -Obrigada, mas estou de carro. Os seus olhos suplicavam atenção e ela sabia que devia ir agora, não conseguiu. -Eu sei onde fica a escola deles. Disse Vincent sorrindo. Ora essa, ela também sabia onde ficava. Contudo não sabia explicar o que estava acontecendo. -Vou pegar minha bolsa e já volto. No momento em que falou, um sorriso satisfatório se abriu na boca dele. Ele a viu caminhar de costas até desaparecer em um corredor. Flora avisou que ia precisar sair, e que não demorava a retornar. Lavou o rosto na pia do banheiro e olhou para seu reflexo no espelho, sentia-se feliz não sabia por que, na verdade ela desconfiava qual o motivo só não queria admitir. Mas sabia que deveria ter cuidado. Foi com a roupa da cozinha mesmo, não daria tempo de trocar. Vincent estava a sua espera na mesma posição de antes. Ao vê-la sentiu um frio delicioso na barriga, suas mãos quentes transpiravam, ele não se importou, sorriu e a acompanhou até seu carro, Flora estava prestes a abrir a porta quando ele tocou seu ombro, um toque rápido, tecnicamente sua mão não chegou a encostar a pele dela, mas a proximidade e o calor a fez estremecer. Ele abriu a porta e a convidou a entrar, fechou a porta a encarando, deu a volta no carro e entrou. O ar abafado do carro, as chaves ligando o motor, e estavam na estrada. Era possível sentir o cheiro do silêncio, um cheiro gostoso de roupa limpa, hortelã e perfume floral amadeirado emanando dele. Sentiu-se desconfortável, torceu para que seu cheiro de suor e óleo não estivesse tão visível. Fitava a janela, pôde notar que ele a olhava de canto de olho. Virou-se para encara-lo e ele naquele instante sentiu o corpo vacilar, a ponto de não ver o quebra-molas que se seguia. O carro deu um pequeno pulo enquanto ele desviava o olhar da estrada para ela. Flora sorriu. -Desculpe, melhor você prestar atenção na estrada. Disse timidamente. Vincent sorriu. -Desculpe. Você ia falar alguma coisa? Piscou os olhos rapidamente. -Não. Você está bem? Perguntou, notando que algo o estava incomodando. -Acho que entrou algum cisco no meu olho. Seus olhos lacrimejavam, ele gargalhou e a encarou. Parou o carro para poder coçar os olhos. -Deixa eu ver. Disse Flora, levantando seu queixo com a mão. Chegou mais perto, tanto que podia sentir sua respiração um pouco ofegante, sua boca estava entreaberta e seus olhos vermelhos a fitavam, ela soprou em seu olho uma e duas vezes, voltou a encarar-lo, Vincent estava paralisado, sem reação, nem piscava. Flora sorriu e perguntou: -Melhorou? Vincent sorriu extasiado. -Melhor impossível. Afirmou, fitando-a. Fizeram o resto do caminho em silêncio. As crianças estavam a espera no pátio da escola, quando avistaram Flora vieram a seu encontro, Shopie correndo com suas tranças balançando. -Não corra querida! Disse Flora. Ela diminuiu o passo, Clement pôs a mão em sua cabeça, bagunçou seu cabelo e passou na sua frente. Clement beijou Flora no rosto. Shopie fez uma careta e pulou em cima dela, a agarrando pelo pescoço e prendendo sua cintura com suas pernas. Flora rodopia e a põe de volta ao chão. -Vincent, o que faz aqui? Quer saber Clement. -Vim saber notícias do seu pai e visitar vocês. Disse ele, abraçou o garoto e bagunçou seus cabelos. Shopie gargalhou, Vincent a pegou nos braços e foram para o carro.

O dia estava lindo, caiu uma leve garoa quando eles já estavam chegando ao restaurante. As crianças entraram no restaurante e Flora disse para Shopie não correr. Ficaram a sóis novamente. -Obrigada! Foi muita gentileza sua. Falou. -Foi um prazer! Disse ele sorrindo. -Ainda tenho muito o que fazer por aqui hoje, tenho que ir. Disse Flora, os olhos fixos no chão. -Você poderia me dar seu número? Disse nervoso. Flora anotou em um pedaço de papel que ele a ofereceu. -Pronto. Disse ela. Ele sorriu e estendeu-lhe a mão, quando ela fez o mesmo e tocou sua mão ele a levou em direção a sua boca e a beijou demoradamente, seus olhos lembravam uma noite clara com estrelas. Ela mal conseguia respirar quando ele já entrava no carro. Buzinou para ela antes de seguir estrada. Flora suspirou mais alto do que gostaria, entrou. Sophie e Clement estavam a sua espera no vestiário, colocaram toucas descartáveis e foram para a cozinha. Flora preparou-lhes macarrão com queijo. No fim da tarde e do expediente os levou ao hospital para visitar o pai. Flora contou que Vincent tinha ido ao restaurante e mandou lembranças, notou com alegria que o amigo estava com mais cor. Anoiteceu rapidamente, ao farfalhar das folhas alaranjadas que caiam e ao canto de uma insistente cigarra Flora desejou boa noite a eles e os beijou na testa. Fez um chá e sentou-se em uma poltrona para ler um pouco, o sono chegou ao mesmo tempo que a chuva, levantou-se e caminhou com os braços cruzados até a janela, a abriu e inspirou o ar profundamente, se tinha uma coisa que ela realmente apreciava era o cheiro de terra molhada de chuva, esse cheiro a fez pensar em Vincent. Estava frio, algumas gotas atrevidas de chuva caíram sobre seus braços e então ela fechou a janela, coçou os olhos, bocejou e deitou-se na cama.

Flora e os Cogumelos ComestíveisWhere stories live. Discover now