XII - Os microrganismos de Flora

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Começara a nevar de manhã, Flora acordara com o espetáculo branco e puro na tela da sua janela, o frio nem era a questão, embora ela estivesse agasalhada o bastente, entretanto, a beleza que vislumbrava fazia valer a pena. Ela se sentia particularmente vazia em dias como esses, frios, com neve - não necessariamente com neve -, não que se importasse com isso, mas dessa vez, sentia falta de algo que ela provara e que não saciara seu desejo. Deve ser loucura, pensava ela, ela mal sabia quem ele era, vocês sabem muito bem de quem estamos falando -Vincent-. Havia muito tempo que ela não se sentia da forma como se sentia quando estivera com ele, se sentia totalmente completa, sabem como é? Quando não falta lhe nada, e você se sente inteira de uma forma como nunca sentiu? E todas peças do quebra cabeça do organismo dela, incluindo os microrganismos e as bactérias que compunham seu ser, os átomos que a formavam, se encaixam? Pra ser mais exato, ela não sentira isso antes por mais ninguém, por isso sentia medo. Estava vulnerável. O que estava sentindo se expandia de certa forma, que era impossível controlar, e não sabia o que fazer, somando, ou melhor, multiplicando a tudo isso, eles não se falavam desde aquela última vez. Estava receosa de criar expectativas de mais. Agora chega de pensar nisso, era o que sempre pensava todas as manhãs desde aquele beijo. Mas afinal, ela precisava trabalhar, não é mesmo? Quem vai ter que comprar comida pra se alimentar, depois no fim das contas? Então, ela se preparava para começar o dia.

Sr Gerard não estava na portaria novamente, ela foi até a sua casa, que ficava no final do prédio, era uma casa pequena e charmosa. Bateu três vezes. A esposa dele foi quem abriu a porta. Seu semblante parecia carregado de preocupação, o rosto cheio de rugas, a dureza de quem já viveu o suficiente para saber o que o mundo tem a oferecer. Mas sorria. -Olá, querida. Posso ajudar? Disse, ela se chamava Margaret, Sr. Gerard já havia mencionado antes. Tinha cabelos brancos, olhos azuis, bem azuis, e suas unhas que tocavam a porta, estavam pintadas de uma cor vinho bem intensa. -Bom dia, senhora! Eu notei que Sr. Gerard não tem ido trabalhar ultimamente, e queria ter certeza se estava tudo bem. -Ah, querida! O dono do prédio disse que colocaria um comunicado, mas parece que ainda não o fez. Mas o que aconteceu, foi que, meu marido, pobre Gerard! Está hospitalizado, minha filha está lá com ele agora e eu vim descansar um pouco. Flora ficou arrasada, e muito preocupada. Ela sabia que havia algo de errado. -Mas o que aconteceu? O que ele tem? Perguntou. -Teve um derrame, mas está estável agora. Ficamos muito preocupadas, minha filha e eu. De manhã quando acordei, ele não queria abrir os olhos, fiquei desesperada e liguei para ambulância, mas agora parece que está tudo bem. -Fico mais aliviada agora que a senhora disse que está mais estável. Ele é uma pessoa muito querida, tenho muita consideração por ele. Será que posso lhe fazer uma visita? -Que gentileza! Seria ótimo pra ele, receber sua visita. Ela passou o endereço, Flora se despediu e foi trabalhar.

Chegando no trabalho, teve uma surpresa. A família de Vincent estava lá, na verdade, só os pais dele, o marido conversava com Pierre. E ela lhe contara que seu filho, o mais velho, foi quem ficou tomando conta do vinhedo. E que eles vieram resolver umas pendências que tinham na cidade e foram lhe fazer um convite, em nome de Vincent. Disse-lhe que ele havia contado o que estava acontecendo entre eles, e que estava receoso de que o tempo que tivesse que ficar fora mudasse isso, então ele pediu que sua família fosse fazer um convite a Flora, pessoalmente, como ele faria. Vincent, -fazendo um breve resumo do que vai acontecer- comprara uma passagem para ela ir passar o resto do tempo que ele ficaria lá, com ele, isso seria perfeito para eles se conhecerem melhor, para realmente verem se o que sentiam era forte o bastante para durar o bastante. Mas Flora tinha que trabalhar, além disso, ela não podia perder a feira de cogumelos que iria ter, no sábado. -Querida, eu já falei com Pierre. Ele concordou em antecipar suas férias, ele se lembra do que você fez por ele, e ficou muito feliz com essa notícia. E além disso, você vai ter o tempo que precisa para se organizar, ir nessa feira, a viagem está marcada para o domingo de manhã. Agora Flora não tinha mais argumentos. Aceitou, por fim. Mas disse que ainda iria pensar melhor. -Vincent disse que ligaria hoje. Ela comunicou sorrindo. Passava as mãos nos ombros de Flora. Ela, Adele, estava realmente satisfeita com o envolvimento do filho com Flora, havia bastante tempo que Vincent não apresentava a família uma namorada, o que a deixava preocupada, ela queria netos! E nenhum dos filhos ainda lhe dera esse prazer. Mas André, o mais velho, era noivo. Laurent veio cumprimentar Flora e também fez questão de demonstrar sua satisfação. Flora enfatizou que eles não tinham nada de concreto ainda e ficou muito envergonhada com os comentários a esse respeito. Eles se despediram, ela agradeceu por eles terem vindo até aqui e por terrem feito tudo isso. Ficou tão feliz, que mal podia se conter. Na cozinha o dia foi como de costume, corrido como sempre era, e repleto de paixão pela comida. Algo que os clientes com toda a certeza podiam sentir. As pessoas vibravam quando eles entravam no salão com a frigideira em chamas, flambando a carne até alcançar a perfeição. Todos levantavam-se e aplaudiam de pé. As vezes alguns dos clientes passavam da conta no vinho e os garçons logo providenciavam um taxi para eles. Ao final, sempre ficava um ou outro cliente em alguma mesa, alguns minutos antes de fechar, ou era pela conversa ou pela comida que se demoravam, cabia a Louis a função de avisar sobre o fechamento. E assim acabavam os dias no Ambroise, que tinha muitas histórias escondidas por dentro de suas paredes de vidro. Houve um dia, antes mesmo de Flora chegar lá, e dos outros funcionários, que segundo Pierre, uma cliente gravida teve um desejo muito estranho certa noite, e mais, ela costumava vir comer no restaurante todos os dias desde que começou a ter desejos de gravida. Mas nesse dia, o que ela pedira, foi tão inusitado que não tinha no estoque, o que era de se esperar normalmente, já que eles não serviam cabeças de animais. Pedira uma cabeça de ganso com foie gras, que é o fígado do animal. Isso, eles tinham, mas a cabeça... Bom, eles deram um jeito de conseguir. Serviram com salada. E Pierre afirma que ela comeu até os olhos do dito cujo. Fora as outras diversas histórias que ele jura de pés juntinhos da Silva, que ocorreram.

A semana se passou mais rápido do que Flora imaginava, isso porque foram dias corridos, o restaurante tinha uma reserva para o casamento de uma celebridade hollywoodiana que insistira que fosse feito lá, o restaurante onde conheceu o marido num coquetel. E diga-se de passagem, ela pagou muito bem, além disso, seria uma ótima propaganda para o Ambroise, embora não trabalhassem com esse tipo de serviço. Mas o que eles não esperavam, era que a cliente fosse tão instável, acreditem se quiser, todos os dias ela mudava algo no cardápio e atrapalhava o andamento das coisas, contudo, no dia, enfim, deu tudo certo e foi muito bonito, mal dava pra sair pela porta de tantos paparazzi que ocuparam toda a redondeza, além disso, na quarta feira, ela foi ao hospital visitar o Sr. Gerard. Ele estava bastante debilitado, deitado numa cama de lençóis brancos, via futebol e comia um pote de pudim de chocolate que a enfermeira trouxera mais cedo, ele disse que era a melhor coisa que comeu desde que chegara ali, não colocavam sal na comida, reclamou. E não podia fumar ali, ele bem que tentou. Flora reclamou quando ele contou isso, afinal, ele estava com os pulmões atacados justamente por causa do cigarro. Ela lhe levou um bolo de chocolate, imaginem o sorriso que ele lhe abriu! Se despediu e foi embora. Naquele mesmo dia recebera uma ligação de Anne Marie. Ela lhe contou o que havia acontecido, que bateu o carro em um pobre bichinho e que estava arrependida, chorava. Marcaram de se ver no domingo, iriam tomar um café em Rose. O evento ocorreu na sexta. Mas contou como se fosse a semana toda, de tanta dor de cabeça que tiveram. O restaurante não abriria nesse final de semana, no sábado era a feira de cogumelos, Pierre e Flora teriam que chegar cedo se quisessem os melhores, lá eles não faziam reservas de produtos, a não ser que fosse os mais raros.

Flora e os Cogumelos ComestíveisWhere stories live. Discover now