Águas passadas

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Estamos todos em choque depois de tudo isto, mas em parte felizes por tudo ter acabado.

Encontramos a Inês à saída com os outros porque mal ouviu os tiros decidiu chamá-los e pedir ajuda porque não sabia onde eu e a Carol estávamos. 

Agora, e mais uma vez, não temos rumo. Não sabemos para onde ir por isso decidimos "acampar" perto da floresta. Eu fiquei com o primeiro turno, por isso, enquanto os outros dormem, estou sentada em cima de um dos carros para ter melhor visibilidade. Odeio fazer turnos sozinha porque é muito mais difícil não adormecermos quando não temos ninguém com quem falar. Enquanto estou perdida nos meus pensamentos e queixas pouco significantes,  o João acordou e aproximou-se do carro onde estava sentada. Só reparei nele quando subiu e se sentou ao meu lado.

-Está a ser muito difícil te manteres acordada? - perguntou.

-Estava exatamente agora a pensar o quão sonolenta esta função é (risos). É muito melhor quando fazemos turnos acompanhados mas entendo que seja melhor assim. - respondi.

-Agora não precisas de queixar tanto, eu estou aqui. Se adormeceres eu dou-te um empurrãozinho.

-Acho que se me deres um empurrãozinho, a probabilidade de eu cair abaixo do carro e morrer é elevada (risos).

- Não quis dizer um empurrãozinho nesse sentido (sorriso). - respondeu o João, indignado.

-Eu percebi, estava só a gozar contigo (risos mais fortes).

-Acho que o meu sentido de humor morreu com o mundo.- afirmou o João, agora mais sério.

O João é o tipo de pessoa que eu iria gostar se nos tivéssemos conhecido antes disto. Não que não goste dele agora, mas seria tudo diferente. Tudo muito diferente. Ele parece o tipo de pessoa que iria gostar dos mesmos filmes que eu, dos mesmos jogos que eu e até das mesmas músicas. Mas agora tudo isso se foi.

-Sinto falta do mundo como era antes. Eu sei que não tenho sequer direito de me queixar porque tenho muita sorte por ter o meu pai e o meu irmão comigo mas não consigo evitar. Não gosto deste mundo. Não gosto do que a humanidade se tornou. Não percebo porquê que isto aconteceu.

-Não é por achares que existem problemas piores que o teu que isso tira o significado e importância da tua dor. Não é por haver mais gente a sofrer que isso implica que não tenhas o direito de te lamentar. Eu já não tenho ninguém. Perdi a minha família, a minha vida. Perdi-me a mim. Mas tenho que me voltar a encontrar. Alguma coisa de bom tem que ter sobrado e é isso que me faz continuar. É isso que tem que te fazer continuar.

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