Capítulo 22

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Era quatro da manhã quando acordei para buscar Anna na casa de Victor e levá-la de encontro aos seus pais. Já pensei em tudo: sem memória, Anna não se lembrará de mim, o que a deixa livre de qualquer perigo relacionado ao Covil, uma vez que ela não terá mais motivo algum de voltar àquele lugar. Com seus pais, ela estará segura, penso. Dizem que ao lado dos pais é o lugar dos filhos. Só que não há relacionamento e sentimento fraternal entre Anna e seus pais. Bem, isso passará a ter.
Ela estará segura. Isso é o que verdadeiramente importa. E não se lembra de mim. Parte de mim sabe que é melhor assim, outra parte me acusa de estar roubando um pedaço de sua história não querendo que ela se lembre, outra parte, ainda, egoísta, deseja que ela lembre de nós dois, de nossa história, nosso sentimento, de nosso beijo... Eu planejava pedi-la em casamento...
Abro a porta do carro. Chega a ser engraçado lembrar da primeira vez que pisei meus pés aqui. Estávamos completamente apavorado - eu e Anna. O chão estava úmido e minhas botas afundavam levemente, fazendo um barulho nojento. Anna ficou no carro à minha espera e eu vi Victor, pela primeira vez, com uma faca enorme nas mãos. Devia estar tratando um peixe que, penso, foi pescado no rio. Ah,o rio! Planejava levá-la lá. Eu planejava tantas coisas...
Desço. Caminho até a varanda, subo os poucos degraus, bato.
Sem precisar esperar muito, Christopher abre a porta. Como não há necessidade de palavras supérfluas, ele apenas abre passagem.
- Anna? - Chamo-a.
- Certo do que estás fazendo? - Pergunta-me Victor ao pôr uma de suas mãos sobre meu ombro.
- Não... Mas não posso arriscar destruir tudo outra vez.
Victor, satisfeito pela resposta, vira-se de costas para mim e sobe as escadas.
Caminho para a sala de jantar, para os retratos na parede. Victor, Vivienne, Christopher e Eloah.
- Estou pronta. - Ouço-a dizer por trás de mim. Viro-me.
- Tão rápido?
Ela não responde. Cruza as mãos de frente ao corpo, esperando-me.
- Bem, então te despeças de todos, teus pais te esperam na cidade. - E, sim, os pais dela a esperava. Um homem baixo e barbudo, uma mulher esquálida e branca. Os cabelos negros como os de Anna. Olhos tão negros quanto, porém rasos.
- Já nos despedimos. Prometa-me uma coisa? - Esperava que já tivesse se despedido, mas que tem ela a me pedir?
- Se puder cumprir...
- Não me deixarás muito tempo longe de Victor, Christpher e Eloah.
- Prometo.
- Para além disso, estarás sempre perto também. - Esta choca-me como um tapa. Ela quer me ter por perto! Será porque além de Victor e sua família sou o único que ela conhece ou porque, em seu interior, ainda arde uma pequena chama do sentimento que um dia foi uma fornalha?
- Prometo.
Por fim, entramos na caminhonete e seguimos, depois de um longo "até mais" que eu temia muito ser um "adeus" disfarçado.

- Vai demorar muito? - Pergunta-me, alguns minutos depois de sairmos da casa de Victor.
- Humm, talvez.
- Eu queria lembrar das coisas. - Desabafa, como se estivesse sozinha.
- Também queria que te lembrasses das coisas.
- Podes ajudar-me com isso? - Ela vira-se e encara-me. Tento me concentrar na estrada e em seus buracos - Eloah disse que se eu descobrir tarde demais pode ser, digamos, ruim.
- Não acho que seria de todo ruim. Mas, sabes, Anna, estás mais segura sem lembrar.
- Eu não entendo... - Murmura e encosta a cabeça no banco.
Ah, como dói fazer isso com ela! Metade de mim acredita que isso é o certo a se fazer, outra metade sabe, perfeitamente, que ela será vítima outra vez. O que ambas as partes sabem, porém, é que perto de mim ela não estará segura. E eu não posso deixá-la no meio do nada, naquela floresta.
- Diga-me como nos conhecemos. - Diz e faz-me engasgar, gelar, paralisar.
- Faz muito tempo. - Digo baixo e rapidamente. Era intenção minha e de Victor que se for para ela morar com os pais, não saiba nada sobre o Covil e, claro, muito pouco de mim.
- Quanto tempo? - Ela ainda é tão... ela! A teimosia, a curiosidade.
- Nos conhecemos quando tu tinhas quatro anos. Mas, Anna, não devias saber dessas coisas.
- Quatro anos? Tão jovem? Por que não? Não seria mais simples se vocês me contassem o que aconteceu e eu tentasse então recuperar e memória?
- Não, não seria mais simples.
- Por quê?! - Agora parece frustrada.
- Porque você estará segura!
- Longe de mim mesma? - Grita.
- Não, longe de mim! - Grito também por impulso. Céus!
Anna se cala. Melhor assim. Recupero a velocidade do carro e sigo.

O resto da viagem foi em completo silêncio. Anna parecia pensativa, ou talvez aterrorizada. Ela pode estar com medo de mim agora...
Desço do carro e abro a porta para Anna. Ela olha-me, profundamente, antes de descer do carro. Seguro o seu olhar pelo máximo de tempo que consigo. Essa deve ser a última vez que a vejo. Ah, Anna...
Anna caminha e para de frente à entrada da casa onde seus pais estão morando agora, na cidade. Imagino o que está a se passar em sua mente agora, tento não forçá-la a nada.
- ... você? - Ela sussurra. Não compreendo o que diz desde o início.
- O que disse?
- Por que eu deveria ter medo de você?
- Não foi o que eu disse...
- Foi sim. - De fato, se ela não está em perigo ao meu lado deve sentir medo, sim. Ela só disse em outras palavras.
- Porque... - Tento formular as palavras - Perto de mim estarás vulnerável outra vez.
Anna vira-se bruscamente e antes que eu possa me mover, lança:
- Mas foi só quando estavas lá que eu não desmaiei. Não podes ser tu a minha destruição.
- Mas sou. - Lamento - Agora estarás em casa, segura. Não deves temer.
- Voltarás? - Pergunta.
- Não. Espere.
Volto para a caminhonete e retiro do porta-luvas um dos colares com pingente de chave, o que era de Juliet.
- Aqui, é seu. - Entrego-lhe.
- O que abre?
- Não sei se um dia lembrarás, mas se lembrar, abra-a!
Com essas palavras, bato e os pais dela surgem. Como já havia conversado com eles, apenas peço-lhes que cuide muito bem dela e me despeço de Anna.
- Adeus, Anna.
- Até breve.

O Covil (EM REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora