Capítulo 21 - Anna Barganne - 2 dias depois

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     Passaram-se dois dias desde o dia em que acordei com a memória falha.
     Depois de que foi decidido que eu iria ao encontro dos meus verdadeiros pais Edgar foi embora, ainda aquela noite, dizia que resolveria as coisas e que voltaria para me levar quando todos estiverem prontos para me receber. Isso faz-me pensar se estavam de fato à minha espera.
     Desejo mesmo que Edgar volte o quanto antes para me buscar. É estranho ver Victor todos os dias e lembrar que, embora sejam ele e sua família minha única lembrança, não faço parte desse lugar, não o pertenço.
     As crises só pioraram. Não houve uma única outra vez em que as lembranças voltassem sem dor e sem me levar a cair desmaiada, somente aquela noite em que Edgar segurou-me. Soube naquele instante que realmente o conhecia, mas não sei de muita coisa. Toda essa confusão só leva-me a desejar encontrar novamente meus pais e tentar uma vida normal.
     Além das lembranças que surgem sempre em momentos inesperados com dores insuportáveis e uma sensação agonizante que rouba-me os sentidos, ando tendo pesadelos. Oh, muitos pesadelos! No meio das últimas duas noites acordei soando frio com o mesmo sonho:

    Era noite, o vento soprava forte contra a única árvore do jardim. Uma mulher segurava-me pela mão conduzindo-me para a única árvore do que ali se encontrava. Olho de forma vaga as mãos delicadas da mulher, embora as minhas sejam muito menores e rechonchudas, quase sem unhas. Inúmeras vezes tento olhar seu rosto, tentativas sempre frustradas. Ao estar totalmente coberta pelos galhos novos da árvore e suas folhas, a senhora me agasalha. Cintura fina, modos elegantes. Ela parece jovem.
     - Eu tenho certeza de que gostarás, Anna. - Ela sussurra para mim e me faz sentar sobre uma esteira de palha que estava sob a árvore - Acho que ele está com vergonha de ti.
     Sem entender do que ela falava e ao mesmo tempo apreciando sua voz suave, espero. De alguma maneira, sabia que tinha de esperar.
     Alguns instantes depois um garotinho sai de dentro da casa, caminhando em nossa direção. Também não consigo focar em seu rosto.
     - Pensei que tinhas adormecido lá dentro! - Diz a senhora indo ao seu encontro, abraça-o e estende seus braços incentivando-o a sentar ao meu lado. O que ele faz prontamente.
     - Posso agora contar a história! - Diz ela posicionando-se à nossa frente.
     Sinto-me levemente incomodada pela presença silenciosa do garoto. Penso em fazê-lo falar, mas temo que a senhora reclame. Volto a observá-la e vejo que seus lábios se movem, como de quem está falando, e não vejo nada em seu rosto além de seus lábios. Para acompanhar, ela move seus braços.
     De supetão, o garoto ri - Ele era um garoto bobo - diz.
     Viro-me novamente para ele, dessa vez assustada. Está ele ouvindo a história que eu não ouço?
     Volto para a senhora, torcendo para que seus lábios estejam fechados. Não estão. Movem-se rápido e suavemente. Levanto-me, como uma criança que não está gostando da brincadeira. Os lábios dela finalmente se calam e eu espero que pergunte o que houve, na expectativa de que fora da história eu consiga ouvir sua voz. Ela fica quieta, parada. De repente, a sombra da árvore se move bruscamente, cobrindo-a e, de alguma maneira, não consigo ver onde a senhora está. O garoto ao meu lado também levanta, grita e eu posso ouvi-lo. Ele chama a senhora de mãe e eu choro. Sinto-o segurar uma de minhas mãos.
     - Não deixarei que te machuquem. - Tenho a impressão de que ele sussura ao meu ouvido, mas não ouço sua voz.
     A sombra se move rapidamente de um lado para outro. Corro. Corremos em círculos no quintal. Caio. O garoto está perto da árvore, tentando de algum modo despistar a sombra. Então a sombra da árvore toma sua posição normal, quieta e inoscente.
     Penso em gritar por ajuda. Penso em chamar a senhora, mas não sei seu nome. Tento levantar-me, não consigo.
     - Estou presa! - Grito.
     - O quê? - Pergunta-me enquanto se aproxima.
     Olho para meus pés que, misteriosamente, desaparecem nas sombras.
    
     Acordo sempre ao meio da noite, completamente molhada de suor. Eloah percebeu, na última noite. Perguntou-me o que estava acontecendo. Disse apenas que era um sonho ruim.
     - Menina Anna! - A voz de Victor faz-me pular na cama de susto. Levanto-me.
     - Sim? - Abro a porta e convido-o a entrar com a mão.
     - Oh, não será preciso entrar. Vim apenas avisar-te que amanhã pela manhã bem cedo irás para a cidade, para a casa de teus pais. Os verdadeiros. - Diz a última frase sem nenhuma emoção na voz.
     - Edgar me levará? - Pergunto de supetão e de imediato arrependo-me. Que pensará Victor de mim pela maneira como pergunto daquele homem? É bom que controle minha curiosidade se não quiser problemas na casa nova.
      - Sim, ele virá. - Diz sorrindo. Misterioso e contido, ele sorri.
     Ótimo. Ou entendeu que falei por curiosidade ou acaba de julgar-me levada. Quiçá interessada por Edgar! Ora, que modos esses meus!
     - Não que isso importe, realmente. - Digo, tentando desesperadamente afastar hipóteses maldosas da mente se Victor.
     Seu sorriso desaparece. Tão rápido quanto havia surgido momentos atrás.
     - Não importa? - Pergunta, num eco da minha própria fala.
     - Não. - Asseguro - Só desejava não chegar sozinha, isso é, desacompanhada de pessoas conhecidas, à casa dos meus pais.
     - Então Edgar é um conhecido. - Diz com ar de quem sabe mais.
     - Bom, nao lembro-me dele antes do dia em que acordei, mas ainda assim posso me atrever a dizer que o conheço.
     - Tens razão. - Diz, simplesmente - Mas ele é mais do que isso, menina.
     - Como? - Não esperava essa colocação. Se antes achava que ele queria descobrir se penso algo a mais por Edgar, agora parece querer que eu perceba algo.
     - Um amigo. Ele é um grande amigo - pausa - teu.
     - Meu?! - Surpreendo-me.
     - Todos nós queremos que estejas bem, menina, mas tenhas certeza de que ele fará tudo por isso. Confie nele. - E sai do quarto, sem mais palavras. Sendo verdade ou não o que Victor diz, já sabia que podia confiar em Edgar quando o vi. Eu sentia.

##

     Eu e Eloah subimos para o quarto depois do jantar. Victor havia contado histórias de lobos e caçadores. Ele ria e narrava de uma maneira tão viva e intensa que envolvia todos. Eloah chegou a ficar pálida de medo quando ele chegou a um suspense em que o protagonista da história corria risco de morte. Foi maravilhoso.
     - Essa história é nova. - Informa Eloah ao cobrir-se com a coberta e encolher-se na cama. Esta noite está especialmente fria.
     - Se não fosse também seria nova para mim. - Rio brincando com minha própria situação. Há maneira melhor de tirar o foco dos problemas quando não se pode fazer nada para mudá-los?
     - Tenho a impressão de que se fosse uma que conheceste, lembrarias. - Vira o rosto, todo o resto do corpo debaixo de várias cobertas, para olhar para mim.
     - Por que achas isso? - Pergunto.
     - Porque...
     - Porque? - Pergunto quando ela parece ter se perdido no que pensava.
     - Eu estava pensando, Anna, acho que podes melhorar.
     - Achas mesmo? Como?
     - Penso que com o tempo tua memória voltará completamente, por si só. Tenho um pouco de medo disso. Ou talvez seja preciso rever ou sentir novamente coisas do passado para que te lembres. Ou, ainda, lembras perfeitamente de tudo, quero dizer, as memórias não estão perdidas, apenas embaralhadas. Se assim for, só precisas colocá-las em ordem.
     Pondero um pouco sobre o que ela acabou de dizer.
     - Isso, Eloah, alegra-me tanto que nem imaginas! Mas, por que tens medo de que minha memória volte completamente por si só?
     - Porque não estarás mais aqui quando lembrares.
     - Faz alguma diferença?
     - Toda.
     Sinto medo. Não dela, mas de que algo muito ruim possa estar prestes a acontecer. Deve temer ou esperar a minha recuperação completa? Ora, que bobagem! Preciso lembrar-me de quem sou.
     - O que acontecerá se eu lembrar tarde demais? - Pergunto.
     Eloah prende seus olhos nos meus. Já estava me olhando, mas agora é como se estivesse segurando meu rosto e impedindo-me de olhar para outro canto.
     - Eu não sei... - Ela sussurra de maneira assustadoramente baixa e lenta.
     - Ainda acordadas? - Victor desperta nós duas do transe em que nos encontrávamos, onde alguns segredos eram ditos pelo olhar.
     - Apague as velas, papai. Estou cansada e amanhã o dia começa cedo. Para todos nós.
     Victor apaga a maioria das velas, deixando acesa apenas uma que emanava uma luz fraca, como todas as noites. Eloah vira de costas. Tento dormir.
    
    
    

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