Capítulo 23 - Duas semanas depois

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Desde que deixei Anna na casa dos pais não consigo dormir direito. Mal me alimento, mal vivo. A sensação de culpa a qual pensei que estava fugindo decidiu se apoderar de mim.
Não pude suportar mais de dois dias na casa de Juliet. As lembranças mais do que me machucam, me destroem. Voltei para a casa de Victor pedindo, humildemente, para que me aceitasse por mais alguns dias. Me sinto pior que um lixo.
Voltei a trabalhar na cidade, no centro de pesquisas da Universidade, voltando todas as noites para dormir na velha casa no meio da floresta. Reencontrei alguns amigos. Por um instante, tudo voltou a ser como era antes: acordar cedo e ir para a universidade, trabalhar, encher a cabeça e voltar para casa no fim da noite. O que não acontece é encontrar Juliet e Anna dançando e cantando no meio da casa enquanto servem a mesa. No lugar disso, passo algumas horas na estrada antes de chegar exausto na casa de Victor e deitar, olhando o teto do mesmo quarto onde Anna me visitava às vezes, esperando o dia raiar. Nada de sono.
Todas as noites antes de enfrentar a longa estrada passo em volta da casa dos pais de Anna, mas só a vi uma vez. O que é fácil de ouvir, por outro lado, em cada canto da cidade, são os boatos a respeito dela. Só ouve-se falar do casal que voltou depois de 17 anos. Fala-se também de sua filha. Algumas pessoas que conhecem Anna afirmam que ela nunca foi embora de Endora, enquanto outras pessoas juram de pé junto que ela veio com eles também pois "nunca antes se havia visto moça tão bela na cidade", diziam. Eu ficava sempre calado, apenas buscando ouvir o que se dizia.
Não ouso falar com Victor sobre tais boatos. Falar de Anna parece ser proibido. A casa está estupidamente silenciosa, sempre. Eloah não sai mais de seu quarto, exceto quando desce para as refeições. Christopher desaparece todos os dias depois do almoço. Suspeito de que vá para a casa de Viana, algumas vezes ele volta com caças que Victor prepara para o jantar. É como se estivéssemos todos de luto.
Uma noite, percebi que as velas da biblioteca de Victor estavam acesas. Atrevi-me a ir até lá e o encontrei sentado, olhando para o teto, sem esboçar nenhuma reação, com o que parecia ser um álbum de fotos no colo. Seja lá que tipo de maldição tenha afetado todos nós, precisa ser revertida - lembro-me de ter pensado. Então eu entrei. Ele percebeu que eu estava lá, embora não tenha movido um músculo. Talvez soubesse que estava lá desde o momento em que o observei pela fresta da porta. Ficamos sentados um ao lado do outro a noite toda sem dizer uma palavra. Pela manhã levantei-me e fui para a cidade trabalhar. Sinto-me preso num daqueles pesadelos onde se quer gritar e não consegue. Que está acontecendo, meu Deus?
Levanto-me.
Hoje não preciso ir trabalhar portanto estou trancado no quarto desde a noite anterior. Já é hora do almoço.
Sigo para a sala de jantar, nos corredores as velas sobre os candelabros estão todas apagadas. O dia está relativamente frio, mas não há chuva e a luz do sol ainda consegue iluminar algo.
- Finalmente. - Diz Christopher ao me ver sentar à mesa.
- Bom dia.
- Já é tarde.
- Boa tarde. - Digo, fitando-o. Mas que tipo de diálogo é esse? Quando nos será devolvido a vida?
Victor entra no cômodo acompanhado de Eloah que o ajuda a trazer as panelas com os cozidos de Victor. Sentamo-nos todos à mesa.
- Devemos orar antes da refeição. - Diz Victor, surpreendendo a todos.
- Mas não fazemos isso em voz alta há muito tempo.- Contesta Christopher.
- Ora de mudar as coisas.
Então todos dão as mãos sobre a mesa, o que lembra-me as refeições em casa quando Juliet ainda era viva. Victor pronuncia algumas palavras direcionadas a Deus, ele pede perdão, agradece e por fim pede algumas coisas.
- E peço que O Senhor a proteja. - Diz.
- Amém. - todos dizem, inclusive eu. Talvez essa seja minha chance, uma vez que Anna foi citada outra vez nesta casa. Mas que poderia falar?
Acabo por calar-me e comer em silêncio. Victor não contou nenhuma história depois, como de costume. Embora fizesse isso mais à noite depois do jantar, espero que o faça desde quando voltei, de manhã ou à noite.
Ao fim da refeição, todos levantam levando seu prato para a pia. Fora esse momento, quase nunca entro na cozinha. Victor tem um especial ciúmes por ela.
Vou para o quarto. Sento-me na cama e espero slgumad horas passar.
Acordo. Nossa, ao menos consegui dormir! Volto para a sala de jantar. Sobre a lareira (que nunca foi acesa desde que Anna se foi, mesmo em noites tão frias quanto as últimas) há os retratos de Victor e sua família. Paro, observo-os.
- Perdido em pensamentos? - Desperto-me depois de alguns minutos olhando os retratos com a voz de Victor.
- Me afogando neles.
- Sabes, menino. - Ele estende uma mão e passa sobre a face da esposa no retrato - Às vezes precisamos ser humildes e perdoar a nós mesmos.
Onde ele quer chegar com essas conversas confusas? Tais como as conversas de Eloah.
- Onde quer chegar?
- Ora, menino, não seja tão objetivo.
Calo-me. Como quase nunca tenho respostas para Victor e sua filha, presenteio-os muito com meu silêncio.
- Vivienne poderia ter ido embora, como eu quis que ela fizesse uma vez.
Resisto à ânsia de olhá-lo e continuamos a fitar o mesmo ponto da imagem.
- Já faz muitos anos - ele continua - Eu estava deprimido e doente. Não fisicamente, mas de alma. Christopher já era nascido, Eloah não. Vivienne sempre foi tão bonita, tão surpreendente, e eu estava afundando-me em mágoas, deixando de ser pai e de ser esposo. Um dia seus pais convidaram-na a voltar para casa. Certamente ela havia comunicado meu estado a eles. Eu parecia um mendigo, não comia e não dormia bem. Eu lembro de desejar que ela fosse embora. Não por querê-la longe, mas por julgar ser o melhor para ela. Ela estava infeliz e eu não conseguia sair sozinho do estado em que me encontrava. Eu precisava se ajuda. Vivienne não sabia mais o que fazer.
Então ele para de narrar. Como sempre faz, afinal, quando quer que entendamos toda a situação. Só então ele continua com a história, por isso eu o esperei.
- Ela decidiu ficar. Em vez de me abandonar e buscar sua própria felicidade, ela decidiu ficar. Ela decidiu cuidar de mim e me ajudar a sair daquela situação. Sabes, menino, ela me salvou. Ela me levava para o rio todas as manhãs, me preparava cozidos, eu era o centro de sua atenção. Ela fez-me sentir amado outra vez. Orávamos antes da janta e do almoço, juntos, como fizemos mais cedo. E posso jurar que ela orava a Deus a meu favor. Então eu melhorei. E, para que não houvesse chances de ficar assim outra vez, ela me apresentou alguém que me ensinou a perdoar a mim mesmo.
As palavras de Victor ecoam por cada canto da minha alma. Enquanto tento entender tudo aquilo o silêncio se instala. Frio e seco, como a noite
- Eu preciso me perdoar, é isso?
- É. - Diz com sinceridade.
- Mas eu a matei, Victor.
- Falhaste, menino, mas a morte dela não cabe a ti. As pessoas falham. Dia após dia, as pessoas falham. Elas erram e machucam umas às outras, a si próprias e também ao ser soberano que tudo observa. Algumas pessoas tem dificuldade para perdoar, com exceção do perdão a si mesmo, não é o teu caso. Fico pensando que ninguém mais guarda mágoa de ti, que todos entendem pela situação árdua pela qual passaste, mas tu não, insistes em julgar-se fraco, derrotado. Talvez as coisas mudem se começares a olhar para ti e perceber que assim como todas as pessoas também estás sujeito à imperfeições.
Como uma flecha. Cada palavra dele parece dizer diretamente ao meu subconsciente e meus mais profundos medos, anseios, sonhos e traumas. Poderei eu, por acaso, ser perdoado?
- Saibas que de qualquer coisa que realmente te arrependas, Ele te perdoa.
E eu soube de quem Victor falava. Viro-me para ele, visão embaçada pela linha d'água que começa a se preencher. Ele disse que eu posso ser perdoado, sim!
- Uma mocinha me disse sobre uma conversa que tiveram - Fita-me - O amor nunca falha, te lembras?
Sinto uma lágrima solitária escorrer, Victor a limpa com a palma de uma das mãos.
- Ela também te perdoaria.
De repente não é mais somente uma lágrima, é um riacho de dor que escorre do âmago do meu ser. Ela me perdoaria. Se ela lembrasse, me perdoaria. Há dias entendi que o que me aflige não é somente o medo de nunca tê-la de volta, mas o medo de nunca ter o seu perdão pelo que fiz. Agora, indo contra todas as regras, Victor diz que ela me perdoaria. Anna me perdoaria.
Ele me abraça. Pouso a cabeça sobre seu ombro e permito que toda dor escorra, em forma de lágrimas. Tenho vontade de gritar, de rugir. E o faço, libertando tudo de ruim que me atormentou: a culpa, o medo. Ainda há uma esperança, foi o que ele disse, ainda há!
Sinto lentamente meus batimentos cardíacos se acalmarem depois de cerca de uma hora e, quando nada mais me impede de falar, liberto-me:
- Eu achava que alguém culpado do que eu sou nunca seria perdoado. Eu achava que, sabes, estava condenado às chamas do inferno.
- Eu sei o que achavas.
- Como?
- Já senti isso uma vez.
- Foi quando tua esposa o ajudou - Ligo as coisas.
- Sim. Ela me mostrou que enquanto há vida há oportunidade de perdão, independentemente de quão grande tenha sido o erro cometido.
- Como ela fez isso? - Estou mesmo interessado.
- Lendo um livro para mim.
- Um livro? - A esta altura, estamos sentados no chão da sala de jantar, ao lado da lareira apagada e no meio do escuro. As velas estão apagadas, não há vestígios de Eloah e de Christopher e só posso visualizar seu rosto através da pouca luz da lua que entra pelo vidro da janela. Ah, está fazendo frio.
- Sim, um livro. Quanta magia há nisso, não? Eu descobri nele o que Dieval queria me provar.
- A existência do bem?
- A existência de um Deus!
Verdade, era esse o propósito do meu pai. Pensar que para tentar salvar um amigo ele morreu e por isso eu o condenei. Mas não há mais espaço para culpa, eu não podia ter evitado.
- Onde esse livro está?
- Na minha biblioteca.
- Eu posso ler? Está em latim?
Ele ri - Não, não está em latim e é claro que podes ler. Mas eu quero te pedir uma coisa.
Sinto um nó na garganta, ago me diz que vou chorar. Que ele disse para isso? Nada, mas minha barriga começa a tremer ao imaginar o que ele me pedirá.
- Se encontrares também nesse livro o que eu encontrei, trarás nossa menina de volta. Curada ou não, sabes bem que o lugar dela é aqui.
Meus lábios tremem. Sinto-os gelados. Talvez seja só uma reação física do frio que está fazendo.
- Há uma coisa que não se pode roubar das pessoas - ele continua - A história delas. Descobriste a de Dieval e consequentemente a de Juliet. Estou contando a minha e de Vivienne, não deixe que a história de Anna seja roubada.
Com isto, não há mais dúvidas.
- Prometo. Agora dê-me o livro, por favor.

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