Parte 1

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Eu decidi que seria na sexta-feira.

Sexta-feira, depois da escola, antes da aula de balé. Era uma brecha oportuna demais para ser ignorada. Como eu andava faltando as aulas de balé, não dariam importância à minha ausência logo de cara. E minha irmã iria dormir na casa de uma de suas amiguinhas, então não seria ela a encontrar o corpo.

O corpo.

Confesso que essa parte ainda me incomodava. Não que eu não tivesse tido meses para pensar em como tudo seria. Ao contrário do que pensariam quando finalmente me encontrassem, eu não tinha decidido aquilo tudo de uma hora para outra, em um surto de tristeza ou raiva ou cansaço. Não. Meu crime tinha sido completamente premeditado.

Mas certas coisas não davam para ser evitadas. Tipo o corpo.

Doía meu coração pensar que alguém, por menor que fosse seu laço comigo, teria que encontrar meu corpo sem vida esparramado na calçada. Eu cheguei a pensar em encher meus bolsos de pedras e fazer um pequeno mergulho no lago, mas de alguma forma talvez a ausência do corpo impedisse que algumas pessoas tivessem encerramento. E eu não podia fazer isso com elas. Não era tão egoísta assim.

Então decidi que morreria voando. E alguém me acharia. Talvez um vizinho desavisado. Talvez meu pai voltando do trabalho. Contanto que minha irmãzinha não encontrasse o meu corpo e não fosse traumatizada pela vida aos nove anos, superaria-se. Eventualmente.

Sexta-feira era um dia simbólico, uma espécie de piada interna entre mim e mim mesma. Era geralmente nas sextas-feiras que eu chegava no ápice da minha dor, no cúmulo da solidão.

Sexta-feira era quando meus colegas começavam a fazer planos para o final de semana e já não me chamavam, porque sabiam que eu não iria aceitar. O que eles não sabiam é que eu não conseguia aceitar. Eu não conseguia mais ser uma pessoa normal, fazendo coisas normais, como ir a festas ou ao cinema. Eu tinha perdido minha capacidade de fingir. Era por isso que eu não podia aceitar os convites. Era por isso que nas sextas-feiras eu me encolhia em minha cama e chorava de soluçar, me sentindo tão sozinha, tão sozinha, tão sozinha que tinha a impressão que só a solidão seria o suficiente para me fazer desaparecer.

Afinal, eu não queria exatamente morrer. Eu conhecia a morte de perto. Quando o câncer levou minha mãe, foi como se uma bomba tivesse explodido. Os fragmentos se encrustaram nos nossos corações, tornando-nos uma versão pior de nós mesmos. Eu não queria fazer isso. Não queria ser uma bomba. Não queria fazer minha família passar por todo esse pesadelo outra vez. Eles não mereciam. Eles eram pessoas boas, meu pai e minha irmãzinha. Eles tinham um futuro inteiro pela frente, e eu sabia que a minha morte desestabilizaria tudo.

Se eu sumisse, talvez fosse pior. Talvez eles gastassem o resto de suas vidas tentando me procurar. Se eu fugisse, me ressentiriam tanto que talvez nunca pudessem seguir em frente, sempre olhando por cima do ombro na esperança de que eu um dia resolvesse voltar. A solução ideal seria eu nunca ter sequer existido.

Mas é claro que isso não dava para fazer, afinal eu já estava aqui, já existia, e infelizmente ainda não tinham inventado a máquina do tempo para que eu pudesse voltar quase 18 anos no passado e impedir que meus pais cometessem o pior erro de suas vidas.

Então, eu precisava morrer.

Eu sei que parece radical, excessivo, inconsequente e até bastante mórbido. Mas era o único jeito para mim. Era o único jeito para alguém que já havia morrido por dentro há tanto tempo.

Eu estava, mais do que tudo, exausta. Estava cansada de andar na rua como se tudo estivesse bem. Estava cansada de as pessoas me verem sorrindo e sequer desconfiarem que cada segundo da minha vida era gasto com uma vontade esmagadora de não querer estar ali. Estava cansada de me sentir sozinha, tão sozinha, tão sozinha, mesmo com dezenas de pessoas ao meu redor, mesmo dentro de um abraço, tão sozinha, tão pequena, tão abandonada. Estava cansada de não conseguir ver o mundo como nada a não ser uma grande bolha de coisas que poderiam acabar comigo: um carro em alta velocidade na frente do qual eu poderia me jogar tão facilmente, uma gilete afiada, uma cartela de comprimidos, o modo como qualquer coisa poderia se transformar em uma corda, o frasco de produto de limpeza brilhando em toda sua glória rosa e tóxica, um saco plástico que poderia rapidamente cortar o acesso de ar à minha cabeça. Tudo era uma arma, tudo era uma salvação.

Mais dois passos e adeus [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora