" If i would know you, would you know me "
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Um jovem vagava pelas ruas escuras de uma capital perturbada pelo silêncio ‒ o esgar mudo da madrugada, uma sombra a mais costurada sob seus pés. Odiava a companhia que se apossava ao seu lado sem ter feito expresso convite. Para afastar o tédio momentâneo, acendeu um cigarro e gingou até uma esquina, onde provocou um trio de prostitutas com versos de poeta. Ah, sim! Poesia; ele adorava recitá-las, sussurrá-las e arrancar suspiros em noites de amor. Mas ele tinha um trunfo maior: a música, arte que aprendera com o pai. Quando as cordas vibravam com a força de seus dedos, o perfume do seu encanto se espalhava. E ele sabia que poderia ter quem quisesse ao toque da primeira nota. Este que vai pelas ruas, é Sileno, o único filho de Pã. Leva com ele, através dos tempos, o frescor da juventude e uma beleza infantil. É um homem, mas também um menino. E sabe tirar proveito dos dois, principalmente quando o assunto são mulheres.
Entre um cigarro e outro, lembrava-se de cada uma que conhecera, de seus nomes, do cheiro, do contorno de cada corpo, do gosto de cada lábio. Não era de se apegar, mas não abandonava a imagem dos rostos que se aninharam na cama ao seu lado. Ele não sabia bem se naquela noite iria topar com uma daquelas lembranças ou criaria outra nova para saborear durante dias. Estava mais a fim de si mesmo. De contemplar-se em solidão. Poderia senti-la na garganta e arranhando seus pulmões; aquele ópio tinha lá seu poder sedutor.
A esmo, escolheu um bar numa viela estreita. Não reparou no que havia escrito na placa neon; apenas queria um lugar para se refugiar do silêncio de fora e esquecer-se do seu próprio. Acomodou-se à mesa vazia num canto e pediu uma cerveja à garçonete, que prontamente o atendeu. Sileno riu consigo; embora a moça gostaria de outro tipo de atenção, ele ficou só com a bebida. Sabia que todos o olhavam, tanto os homens, desconfiados, quanto as mulheres, indiscretas. Não era seu segredo que os incomodava, mas sua presença. Aos olhos dos mortais parecia apenas um garoto; a barba por fazer fantasiava sua juventude. Os cabelos castanhos caíam em grandes caracóis até os ombros e escondiam pequenos chifres. Os olhos azuis destacavam-se, redondos, na pele branca. Os músculos timidamente moldados. Era quase um anjo. Dono de uma suavidade e voracidade anormal. Era isso que os olhos viam, mas as mente confusas, não entendiam.
Sileno não se importou; ao contrário, regozijava-se por dentro. Adorava causar espanto e admiração nas pessoas. Apreciou aquele instante de estranhamento, assim como cada gole da cerveja que descia pela garganta em espasmos gélidos. Os mortais sempre lhe traziam uma dose de diversão sem que eles soubessem disso. Não fugir dele quando o viam pela primeira vez era um de seus contentamentos e uma das razões pela qual abandonara o reino do pai. Nunca confessara isso a ninguém; acreditava ser um motivo tolo, mas honesto.
Um sorriso aflorou discreto no canto da boca, enquanto ele se permitia àquele prazer que nunca sentiria se estivesse ainda nas terras de Pã. Todos fugiriam dele, como fugiram de seu pai. As ninfas se esconderiam nas árvores, nas pedras, nos lagos, ao menor sinal de sua presença. Os deuses zombariam dele por ser imperfeito. Afinal, não era nem homem, nem animal. Era um ser eternamente incompleto. Assombrado por esses pensamentos, mal percebeu que havia estilhaçado o copo de vidro com a tensão das mãos. Acordou com pessoas à sua volta secando a mesa, juntando os cacos, envolvendo sua mão direita com um pano limpo. Faziam uma cena que Sileno julgava desnecessária; queriam sua atenção. O rapaz esquivou-se dos murmúrios preocupados, jogou uma nota no balcão e deixou o bar.
Gostava de roubar atenção, mas quando ela era gratuita demais o incomodava. Com a mão enfaixada, acendeu outro cigarro e deixou a fumaça espalhar pelos pulmões, para depois expulsá-la, limpando a mente. Ao atravessar a rua, mergulhou os sapatos numa das poças d'água acumuladas no asfalto. Sileno resmungou um palavrão. Havia chovido durante sua rápida passagem pelo bar, mas a Lua já se despia acima dos prédios. Aquele resto de madrugada tornara-se úmido, assim como o cigarro e seu estado de espírito. Pôs-se a caminhar pelas ruas vazias de volta para casa, o quarto num sobrado no lado antigo da cidade, não muito longe daquela região.
O corte ardia na palma da mão; Sileno não conseguia pensar mais em nada. O pano estancara o sangramento; em compensação, a dor tamborilava em picos cada vez mais constantes. Seu corpo semidivino absorveria o ferimento, mas resolveu apressar o passo; os sapatos molhados não ajudavam. Cogitou pegar um táxi; na avenida viu apenas um cachorro procurando um lugar seco para pernoitar. Amaldiçoou não ter um celular. Ele, Sileno, filho de Pã, acabou se sentindo ridículo por desejar uma daquelas "geringonças" inventadas pelos mortais. Afastou a ideia da cabeça; retornaria a pé para casa.
Sileno preferiu encurtar o caminho. Numa noite normal não se importaria em demorar-se no trajeto para casa, mas aquela pedia com urgência seu retorno. Passou por um conjunto de residências que costumava evitar; a rua terminava num praça abandonada pela prefeitura e tornara-se um local hostil para desavisados. Não havia alternativa: passando por ali, Sileno estaria minutos mais próximos de seu destino.
Mesmo sendo filho de Pã, o deus dos Bosques, o rapaz não deixou de se arrepiar ao atravessar o pórtico do largo. Mal se viam os bancos engolidos pelo mato alto. A estradinha de cimento se desfazia em inúmeros pedaços sobre seus pés. As árvores erguiam-se em pequenos grupos. Tudo se resumia num borrão escuro, exceto os pontos por onde a luz do luar conseguia atravessar. E foi ali que Sileno a viu pela primeira vez. Ela o aprisionou dentro de seus olhos e ele, pego desprevenido, deixou-se arrebatar. Caiu amaldiçoado por um sentimento desconhecido. Foi fácil demais se apaixonar.
Ela se escondeu entre as árvores assim que o luar se desfez. Sileno despertou daquele momentâneo torpor. Por segundos sentiu-se prisioneiro daquele rosto delicado e pequenino que caberia entre suas mãos. A moça não tornou a aparecer; Sileno ficou angustiado e apreensivo, tudo ao redor engolido pela mais completa escuridão. Mesmo entendendo que a jovem se assustara com a sua presença, ele já desejava reencontrá-la.
No quarto, Sileno fez um curativo para agilizar a autocicatrização e deixou-se adormecer. A imagem daquela bela mulher inundou seu sonho. Acordou no dia seguinte desejando repetir aquele encontro, mas dessa vez seria rápido: não deixaria ela fugir.
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CLAIR DE LUNE
Short StoryUma vez sonhei com um jovem e belo fauno. Seu rosto paralisado só me dizia que ele tinha fugido das terras verdes de seu pai, um grande deus. Vivia escondido e estava apaixonado. Seu amor era impossível. Então, eu escrevi esta história. Seja bem-vi...