Voltar para casa foi estranho. Não, não se tratava daquele cômodo escuro no sobrado antigo da cidade no mundo mortal. Sileno sentiu o pulmão encher-se do ar denso dos bosques de seu pai. Nada mudara ali, mesmo depois de dois mil anos. E tudo estava tão quieto. Parece que tinham pressentido sua presença. Até as árvores se reservavam ao silêncio, mesmo sob aquele quente final de tarde. Sileno abandonou as roupas, sua natureza mais selvagem pedia por isso. Embora o instinto gritasse, conteve o impulso de correr atrás de qualquer contorno feminino que avistava. Ele tinha de ser manter desperto e conscientemente distante do seu lado animal; se sucumbisse, perderia Clair para sempre.
Reteve na mente seu objetivo. A lira acomodada debaixo do braço era um lembrete constante. Sentiu-se mais próximo da razão, apegou-se a ela como se fosse a última gota de vida que corria nas veias. Mais consciente de seus atos, pôs-se a procurar pelo pai. Pã preferia as clareiras, onde passava a maior parte do seu tempo comendo, bebendo na companhia da música e, quando possível, saía para caçar ninfas. Sileno conhecia muito bem os hábitos do pai; se algo tivesse mudado, o tomaria como morto. Não foi diferente do que esperava; encontrou o pai encostado num velho tronco de carvalho feito de trono, aparentemente bêbado. Notou que alguém se aproximava e levantou os olhos pesados. Um choque passou por eles como se tivesse recobrado total consciência.
— Si-Sileno? — engasgou-se Pã, tropeçando nas próprias pernas de bode ao tentar se levantar. Sua flauta rústica pendia por uma corda no pescoço.
Sileno ficou calado. Viu como os anos afetaram mais o pai do que a ele, mesmo tendo vivido entre os mortais.
— É você mesmo, meu filho? Ou é alguma farsa pregada pelos deuses?
— Sou eu mesmo, pai 00 disse o jovem fauno.
Pã atirou-se aos seus braços em pranto.
— Por que foi embora, Sileno? Por que retornou a sua casa depois de dois milênios? — bradou o velho fauno, cansado.
O rapaz se esquivou do pai, derrubando uma ânfora de barro cheia de vinho. A figura degradante de Pã não injetou nele qualquer tipo de ternura filial. Seu desprezo aumentou; conteve-se para não virar as costas e ir embora mais uma vez. Ele percebeu que o pai não tinha a mínima condição de manter-se em pé. Jogou-o de volta ao trono, pegou a ânfora vazia e foi até uma nascente. A água virgem curaria aquela bebedeira. Ao retornar, derramou todo o conteúdo da vasilha sobre o pai, que reclamou e xingou, arisco feito um gato, bufando a água que tinha engolido. Desperto, Pã encarou Sileno como se o visse pela primeira vez. Seu rosto ficou pétreo, os olhos vermelhos pulsaram de ira. Rápidas, suas mãos encontram o pescoço do filho, que se ajoelhou perdendo o fôlego. Pã recuou, surpreso com a própria atitude. Mantendo distância de Sileno, disse:
— O que faz aqui, traidor? — Seu tom continha certo orgulho maltratado.
— Sou seu filho — rebateu Sileno.
— Não. Não é mais. Meu filho não fugiria acovardado pela própria sina. Ele se orgulharia de perpetuar a vontade do próprio pai. Meu verdadeiro filho herdaria cada folha desse bosque, caçaria todas as ninfas que quisesse e cultivaria as noites possuindo-as.
— É um destino pequeno para um homem — disse o jovem fauno.
— Você não é um homem — retrucou o pai. — E nem um animal. Até os deuses o fizeram incompleto: carrega apenas uma parte deles, assim como eu carrego.
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CLAIR DE LUNE
Short StoryUma vez sonhei com um jovem e belo fauno. Seu rosto paralisado só me dizia que ele tinha fugido das terras verdes de seu pai, um grande deus. Vivia escondido e estava apaixonado. Seu amor era impossível. Então, eu escrevi esta história. Seja bem-vi...