A dor rangeu por todo seu corpo como se quisesse parti-lo em mil fragmentos. Ela vinha de um lugar desconhecido, furiosa, um magma incandescente procurando por alguma fresta dentro da escuridão. Mas, retida dentro do seu corpo, ela o queimava. Sentia a língua arder como metal em chamas, o coração explodir em cada batida bombeando o líquido escaldante que era seu sangue. Tudo queimava, até seus pensamentos pareciam evaporar-se. E quando se viu tornar apenas uma luz flamejante, seu corpo inteiro congelou. Sileno tomou posse de seus pensamentos; o peito apertou, mas não era de dor, e sim de alívio. Inspirou o ar da noite. A penumbra fresca o acolheu com seus braços invisíveis. A Lua o espiava entre as copas das árvores; sob sua luz, pela primeira vez tomou real consciência de si e do seu corpo. Perfeito. Um homem mortal.
Sileno recobrou seus últimos momentos com Apolo. Ele teria o matado se quisesse, mas cumpriu sua promessa. Agora suas pernas não tinham mais aquela bizarra forma de bode; era um homem completo. Um homem perfeito para Clair. Quando o nome dela lhe veio à memória, percebeu que estava no largo onde se conheceram. Nada havia mudado durante sua jornada, nem o tempo; o mundo ainda era o mesmo. Sobressaltou-se quando algo se moveu numa sombra além, seu coração mal se conteve de alegria quando viu Clair De Lune surgir em sua magnífica e delicada brancura e escuridão. Sileno se perguntava como ela conseguia ser as duas coisas ao mesmo instante, era única e ela seria sua.
Clair o estudou durante um minuto inteiro. Seu rosto estava impassível, o olhos eram o reflexo do Nada. Um segredo que encantava Sileno cada vez que seu tempo com ela aumentava. Ele ficou parado, temendo que qualquer gesto seu pudesse afugentar a moça dali. Sem que desse o mínimo sinal, ela se aproximou, chegou tão perto dele que poderia sentir o perfume de sua pele, o mesmo aroma delicado das flores que adornavam a coroa feita pelas ninfas.
— Pensei que tinha partido para sempre. — Havia temor na voz de Clair.
— Nunca. — Mais uma palavra não soaria com tanta verdade.
Clair sorriu e perguntou:
— É um presente para mim?
Sileno ficou um instante sem entender. Deu-se conta do que se tratava ao ver os olhos de Clair admirarem a coroa de flor-da-lua, presente das ninfas.
— Foram feitas para você — desculpou-se Sileno, desajeitado.
Como se temesse assustar uma borboleta, tocou vagarosamente os cabelos da moça. Os fios negros e finos se misturavam com a penumbra, desfaziam-se em suas mãos, uma nuvem negra, frágil. Sileno adornou Clair com a aura das flores encantadas das ninfas. Seus olhos encheram de lágrimas ao vislumbrar com exatidão aquela rara beleza, parecia que estivera cego durante todo o tempo. Em nenhum momento tinha percebido aquela real perfeição encarnada no corpo de uma mulher. Uma lágrima percorreu o caminho até seus lábios superiores, Clair De Lune acompanhou aquela dança hipnotizada, uma de suas pequenas mãos tocou o bálsamo da mortalidade, seus dedos apararam a queda de um semideus. Sileno tocou sua pele com um delicado beijo. Tinha a mesma textura da noite: fria, sutil, macia.
Mal Sileno despertara daquele toque, Clair estava a metros distante dele, iluminada por um facho de luar. Ele engoliu em seco quando percebeu que ela desfazia o cadarço do vestido. Desfez-se da própria sombra relevando um corpo pequeno e delgado. Quadris levemente fartos, cintura saliente e seios que caberiam na palma de sua mão. Ela sorriu para Sileno e caminhou para dentro do bosque sumindo nas sombras. Ele a procurou, tateando a escuridão até encontrar uma clareira inundada pela luz da Lua. Clair De Lune estava ali, somente a grinalda de flores completando sua beleza, seus olhos saboreando cada contorno do corpo de Sileno. Ele não hesitou dessa vez: uma força poderosa o atraiu até Clair. Seus lábios se uniram descobrindo apressados o gosto e as profundezas de cada um. Sileno enveredou pelos contornos do corpo de Clair De Lune, que suspirava a cada toque seu. Foi como cair num abismo de escuridão, muito mais gélido, muito mais palpável, onde só se escutavam os estampidos frenéticos do coração, os murmúrios de amor, os gemidos das promessas. Tudo estava completo. Perfeito.
Sileno sonhou passar a eternidade fazendo amor com Clair De Lune. Desejou que aquele momento parasse no tempo, só para os dois.
— Será eterno, meu amor — sussurou Clair, como se lesse os pensamentos de seu amado.
Ele a cobriu de beijos e versos de poetas antigos, deliciado com cada suspiro que conseguia arrancar dela. Então, de súbito, estacou e encarou Clair, ao perguntar:
— Qual é o seu verdadeiro nome, minha donzela?
Clair sorriu, provocante e brincalhona. Mordiscou, carinhosa, as orelhas de Sileno. Ele fechou os olhos, deixando-se envolver, enquanto ela recitava: Tout en chantant sur le mode mineur.
Tocou seu pescoço: L'amour vainqueur et la vie opportune.
Alcançou sua boca: Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur.
Degustou o beijo até o limite do fôlego: Et leur chanson se mêle au clair de lune.
E quando Sileno abriu olhos ela não estava mais lá. Somente a Lua se fazia presente, majestosa num céu que tomou aquela noite só para si e o mortal a esperaria, todas as noites, sob versos ou luar, enquanto vivesse.
~~~~FIM~~~~
N.d.A: Segunda estrofe do poema Clair de Lune, do autor francês Paul Marie Verlaine (1844-1896), retirado da coleção de poemas Fêtes Galantes (1869).
Tradução: "E cantando em surdina pela vida/ E o triunfo do amor, eles têm o ar/ De quem de tudo e até de si duvida,/ E o que eles cantam vai-se no luar"
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CLAIR DE LUNE
Short StoryUma vez sonhei com um jovem e belo fauno. Seu rosto paralisado só me dizia que ele tinha fugido das terras verdes de seu pai, um grande deus. Vivia escondido e estava apaixonado. Seu amor era impossível. Então, eu escrevi esta história. Seja bem-vi...