Lata de cerveja pela metade na mesinha da sala. Ao lado, outra, já vazia, e uma xícara de porcelana, daquelas de meio litro, com salgadinhos de camarão até a boca. São nove da manhã e o desenho preferido de Gaspar desde a infância está sendo exibido na TV: Tom & Jerry. O nome do programa no SBT é "sábado animado". A expressão de Gaspar, porém, não é a de quem está se divertindo. Ao invés da TV, olha para o chão. Lentamente, leva o dedo indicador até o canto direito da boca, entre o lábio inferior e o queixo. Pressiona a pele com cuidado. Volta o cotovelo ao braço da poltrona e apoia firmemente a testa com a ponta dos dedos. Olha para o pires ao lado das latas de cerveja. A peça contém aproximadamente três colheradas de um pó de coloração branca.
Um suspiro profundo. Inspira e expira vagarosamente. Respira como alguém que está a se preparar, tomando coragem. Subitamente dá um tapa de mão cheia no braço da poltrona, inclina-se para perto da mesinha, enfia o indicador na boca e o deixa lá por alguns segundos, umedecendo-o. Troca o dedo de lugar, alternando entre o espaço esquerdo e o direito da arcada. Mantém mais alguns segundos entre a língua e o céu da boca. Retira o dedo molhado e passa no pó branco do pires. É sal. Com os dedos da mão esquerda, dobra a pele do lábio inferior e revela uma afta enorme, que o atrapalhava de saborear os alimentos desde a noite anterior. Gaspar esfrega o dedo sujo de sal na afta. Chorava igual mocinha virgem que acaba de ler a carta do namorado, informando-a de que foi embora. Lágrimas grossas corriam o rosto e ele salivava bastante. A cada dez segundos, era possível encher uma colher de sopa com a saliva produzida. Em dois minutos queimando a afta com sal, Gaspar perdeu quantidade de líquidos equivalente à de uma hora de exercícios físicos na academia.
Ao notar que a esposa vinha para a sala, previne-se, enxugando as lágrimas e corrigindo a postura na poltrona.
- Amor, você estava chorando? - Ela pergunta, observando-o desde a cozinha.
- Eu? "Magina"! Chorando por quê?
- Tenho certeza de que vi você chorando.
- E eu lá tenho motivo pra chorar? Ganho três mil por mês, tenho um Corolla na garagem e uma esposa que amo. Que chorar que nada, amor! Deixa disso...
- Gaspar... - Marisa senta-se no sofá de três lugares. - Vem sentar aqui um pouquinho? Nós precisamos falar do que aconteceu hoje mais cedo. - O marido se levanta da poltrona e vai até ela. - Quero abrir meu coração com você. - Para dizer a frase, Marisa encheu o peito de ar e parecia uma oradora dando início a um juramento, com palavras ensaiadas.
- Ih... quando você diz "abrir meu coração", geralmente a coisa é séria. Sobre o que você quer falar, amor?
- Antes de vir aqui conversar, eu orei bastante. Orei por você, por mim, por nós, por nossa casa...
- Nossa, Marisa... mas o que aconteceu? - Gaspar apanha o controle e desliga a TV.
- Estes dias tenho escutado você gargalhando no banheiro.
- Eu?
- Lógico! Quem mais poderia ser?
- Será que não foi o vizinho?
- Não, meu amor. Foi no NOSSO banheiro. Conheço bem a tua risada. Além do mais, foram quatro dias seguidos. Por que você faz isso? Por que estas risadas no banheiro?
- Ora, Marisa! É tão fácil deduzir! Gargalho porque me olho pelado no espelho e acho ridículo!
- Gaspar, não inventa. Eu sei o que está acontecendo. Senti o cheiro. - O marido fica em silêncio e olha para o chão. - Aconteceu várias vezes no banheiro, e hoje de manhã aconteceu no quarto. Você teve uma recaída, não foi isso?
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Desobras
Short Story"... ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?". (FERNANDO PESSOA - Poema em linha reta) O sujeito que propositalmente provoca o próprio desquite indo...