Sujar a noite

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Nãome imaginava acordado àquela hora. Muito menos perambulandopela rua. Faz frio, bastante frio. Nunca gostei, mas só lembrodeste detalhe quando volto a bater queixo. Minha cabeça estáem outro lugar. Ficou em casa, no último registro de minhamemória. A carta que ela deixou, despedindo-se. As manchas dacaneta preta junto com as letras apressadas sob o fundo amarelado dopapel velho que ela usou para a mensagem. Malfeita igual - ou atépior - que a caligrafia do médico do posto de saúde,que me receitou o antibiótico. Cores duras. E teria razãopara ser de outro modo? Ninguém escolhe com cuidado a cor dacaneta, o melhor traço da letra, nem papel vistoso paraescrever um maldito bilhete de adeus. Nem mesmo um suicida, creio eu,se daria a estes caprichos.


Eusozinho na rua, reparo. Luzes cor de laranja esquisitas na vitrine,noto também. E uma manequim gorda sei lá por queolhando para mim atrás do vidro. "Ela me deu um péno rego, mas nem vem me olhando não, sapona. Sai pra lá",exclamei sincero, olhando dentro daqueles olhos inanimados deplástico. Não, eu não estava bêbado. Éque a desilusão me desnorteia mais que uma garrafa dePresidente.


Umconhaque. Presidente, peço ao garçom amigo. É aomesmo tempo garçom, balconista, dono do boteco e, se elequiser também, companheiro na hora mais difícil, queestá por vir. Olho para a cara dele sem desviar para a TV, oume distrair com as cores das dezenas de garrafas dispostas naprateleira, nem fitar as mesas já vazias. Olho torcendo quaseimplorando para que ele tenha intuição de carioca eadivinhe que eu estou precisando conversar. Que tenha paciênciade quilômetro e calma de mineiro. Depois do primeiro gole,encho o peito para dizer "que bosta", uma das melhoresfrases para provocar intriga e abrir um diálogo, quando vejo oMarcos sentado ao meu lado. "Tá lôco, nêgo?Tardão assim na rua?". Sim, eu disse. Ele também.Exatamente com estas palavras, nesta ordem e até com a mesmaentonação. Mas ele falou primeiro! Não uso estepalavreado porco. A única maneira de falar assim teria de sercopiando perfeitamente a expressão. Numa fraçãode segundo até pensei em dizer: "você enlouqueceu,rapaz, o que faz na rua a esta hora", mas o modo porco soou maislúdico e convincente. Por isso, repeti. Só nãoreproduzi aquele sorriso, que, aliás, nem é dele. Umsorriso estranho.


-Não consigo dormir. A Lurdinha me deixou - confesso, semhesitar.

-Cê tá brincando! Uns quer, outros resiste.

-Hein?

-Ah, parceiro... eu num tô mais guentando a Beatriz. Num queromais. Sério. Sei que tá difícil agora, masdepois, com a cabeça fria, tenta se por no lugar da Lurdinha.Eu tô passando pelo mesmo.

-Difícil, Marcos. Estou aqui a tentar entender o que deuerrado. O que foi que aconteceu com vocês?

-Ah, mano... num quero mais esse negócio de compromisso. Tôbolando aqui um jeito de falar pra ela, mas não sei como.

-Ora, não fala.

-Uai, Paulo, mas eu tenho que falar!

-Nada. Liga pra ela de algum puteiro.

-Caraio!

-Pede pra alguma menina ficar do seu lado, rindo, te falando coisas.Enquanto isso, você conta pra Bia que está tendo umanoite agradável e que decidiu voltar à vida desolteiro.

-Puta que pariu! Puta ideia, m'ermão!

-Vem comigo.

-Onde?

-Vamos até o bar da loira. Aí você liga de lá.

-Tá falando sério? Agora?

-Dois fodidos. E bêbados. Amanhã vamos chegar atrasadosno serviço. Isso se a gente for trabalhar! Então o quemais podemos fazer? Exatamente isto: vamos acabar de sujar a noite efechar com chave de ouro.


Aguardentese perfumes e telefonema e sutiãs e gemidos e pegadas e vômitosdepois, conversamos recostados à cadeira.

-Caraio, a Bia xingou muito...

-Elogiar é que não ia. Mas gostei da sua coragem deligar para ela e falar com sinceridade.

-Ah, véi... nem sei se foi coragem não... tava bêbadojá...

-O que ela disse?

-Pra num pisá mais naquela casa. Pra num falá mais comela.

-Não era o que você queria?

-Uai, até era... mas ela me xingou de débil mental.Falou que não era à toa que eu sou um merdinha na vida.

-Relaxa, Marcos. É normal. Coisa dela. Desde pequena ela xingaassim. Não mudou nem os adjetivos. Débil mental.Merdinha. Quantas vezes ela não me xingou assim? E meu pai. Euns primos. Até o tio João. Só mesmo a mãeela nunca insultou - ele riu e tomou um gole do copo.

-Tua irmã é foda, Paulão - concordei, lógico.

-A Bia é foda, meu amigo.


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