Por causa do vidro

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POR CAUSA DO VIDRO

Calma, Ediovaldo. Você tem que manter a calma! Seu carro não estava aqui em frente a imobiliária, mas sim em outro local que você não consegue lembrar agora. Que tal sentar na praça? Relaxa! Pega um sorvete de nata ali no quiosque, sorri pro sorveteiro, zomba dele falando do vexame que o Corinthians deu contra o São Paulo (este sorveteiro é corintiano com certeza, essa raça conheço de longe). Comenta sobre o generoso comprimento da fenda do decote da morena sentada no banco em frente. Faça rir o pobre mancebo e você vai rir também, relaxar. Em seguida a memória flui mais que o percurso do caldo de caramelo por cima da casquinha, que obedece sem qualquer reserva a obrigatoriedade da gravidade. E não. Memória porcaria nenhuma. O carro estava lá mesmo, em frente a imobiliária, seu goiaba! Você cumprimentou o seu João, proprietário, que te ofereceu um cafezinho e um interessante negócio de aluguel de casa de praia em Santos, lembra agora? (interessante pra ele, só). Doeu a lembrança. As pernas estão bambas e tento disfarçar. Roubaram a porra do carro! Roubaram! O sorvete, que está pela metade, jogo de qualquer jeito no chão. Quase acerto uma pomba. Banho de sorvete nas penas é refrescante e prazeroso, situação completamente oposta à de uma metralhada de merda dela no ombro da camisa, portanto se eu tivesse acertado não seria justa qualquer reclamação dela. Um nove zero correndo no celular.

- Polícia militar.

- Bom dia. Por favor, preciso de ajuda, roubaram meu carro! – - Surge agora a dúvida se eu deveria ter ligado para a seguradora ANTES ou DEPOIS de ligar para a polícia. Estas coisas que nos parecem óbvias em dias tranquilos emperram como um portão enferrujado nestes momentos de tensão.

- O senhor tem que comparecer à delegacia mais próxima para registrar o boletim de ocorrência.

- Tô indo agora mesmo.

Na delegacia, uma sensação de alívio toma conta de meu peito. Observo as olheiras do policial que me atende, lembro de tê-lo visto trabalhando na noite anterior, fazendo segurança para uma churrascaria e me sinto menos azarado. Uma vez aliviado, posso agora demonstrar minha surpresa sincera e minha indignação.

- Eu nunca ouvi falar disso!

- Esta lei municipal é recente.

- Mas vou te contar... como é que pode um carro ser apreendido por estar com o vidro aberto?

- É uma medida de segurança, seu Ediovaldo, um bom serviço prestado ao cidadão pela Prefeitura e pela PM. Pior seria se tivessem levado o carro ou roubado qualquer objeto de seu interior. - O único objeto que existe em meu interior no momento é um chocolate orgânico em forma de churro, que vou depositar em cima desta porcaria de mesa, seu ordinário. - Tenho que lembrar de agradecer à Prefeitura! - Exclamo em voz quase cantada, e pergunto em seguida onde diabos está meu carro.

- No Carlão do guincho.

- Égua! Lá no fim da pista pra Teixeirópolis? - meus sentimentos hoje estão mais diversos do que as cores de um camaleão na estrada tomando carona em garupa duma Hornet a cento e cinquenta por hora. Agora era o desespero que me caceteava o estômago.

- Sim. Aconselho o senhor a comparecer o mais rápido possível, para evitar pagar diárias do estacionamento.

- Eu não tô acreditando nisso! - Já ia me retirando sem me despedir quando o atendente me alerta.

- Tem que pagar a multa antes de ir lá retirar. - Paro em frente a porta da saída da delegacia e nem olho para ele. - O senhor pode pagar no caixa eletrônico do banco de sua preferência. - Cerro os punhos. Milhões de churros orgânicos num poço de seis metros e minha mão direita com luva grossa afundando sua cabeça lá dentro, seu filho da puta!

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