Terra de sal

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Nhéééééé. Shhhhhhhhhhhhhhhhhhh... cataplam!

"Vai fazer barulho lá na casa do capeta, seus côrno. Deixa eu dormir!". Gritei mêmo. Cambada de vagabundo. Eles num sabe do tamanho do meu sufoco. Só quem trabalha presta. Sem eu meus moleque num consegue não. A TV que comprei na Copa ainda não tá paga. Se fosse qualquer outro dia, eu nunca que tava deitado duas da tarde duma terça. É engraçado.

Igual aquele dia na roça quando eu já era rapazim. Enquanto a molecada se batia um no outro na festa, seu Zito com porrete na mão quietava todo mundo na bronca memo. Enquanto ele táva lá amansando os briguento, a filha dele me amansava numa moita escura, lá do outro lado, perto do pasto. Engraçado pra daná. Tempo de moleque é bom.

Tô com gosto salgado na boca. E parece que tem migalhinha de pão na língua. Um monte. E aquele viado do Belenzinho, que ponhô molho de pimenta no meu pão? Eu dei tanta bolacha na fuça dele que nem precisava mais da horinha de quilo do almoço. Foi na base do pescoção que o rango desceu pra pança. Desceu rapidinho.

Eu não lembro se tô de sapatão. Vou tirar, mas não deixo. O pé tá doendo demais.

Quem sabe se eu for pra São Paulo? Lá tem uns trampo chique. O Ximbica tá de garçom no restaurante de grã-fino, tirando dois pau por mês. Vou economizar, fazer curso, porque de marreta eu já tô é cansado. Vendo a bicicleta, a geladeira, deixo os moleque na casa da mãe e zarpo lá pro mundão.

Eu queria mijar. Mas sabe quando bate vontade de madrugada e o caboclo num vai porque num consegue fazer o corpo levantar? Então... tá igual. Fica esperto só quando é pra trepar. Aí pode ser qualquer hora, até bêbado reanima. Safadeza, parceiro. Esvazia os ovos, mas nunca a bexiga.

Tô sentindo cheiro de sangue. Ou a patroa tá nos dia, ou a cachorra carregou bicho morto pra dentro de casa de novo. Ou então sou eu, mas agora não dá pra saber. E tá escuro também.

Uma vez achamo gato morto no terreiro. Batia enxadada forte pra cortá os alicerce aí o coitado tava lá. Enxadona separou umas três costela do resto do corpo do bicho. Inda bem que já tava morto, senão tava gritando até hoje. Depois tinha outro. E depois outro. "Quê isso? Cemitério de gato?", falou o Jean. Dia seguinte ele chegou mais cedinho que nóis e viu um tiozinho de pijama na obra, desenterrando mais gato morto. Saco preto do lado, cara amarrada, no sapatinho e tudo. Mas o sapatinho do coroa desamarrou. Jean foi ver qual era a dele. "Quê isso aí, senhor?". O tiozinho disfarçou, catou o saco, foi saindo e Jean foi atrás. Bateram boca. Chegou seu João e cabô c'a conversa. Chamou polícia e dia seguinte bairro todo já tava sabendo. O cara matava os gato dos vizinho e enterrava tudo ali no terreno baldio. É Jean... moleque foda. Acertou na mosca: cemitério de gato.

E no bar do Jão nóis tomava uma e falava da história. Falei pro Jean virar polícia, descobrir as treta. Ele deu foi risada. Falou que com a quarta série que tem num conseguia nem de faxineiro dos polícia. Nem isso, nem jardineiro das muié dos polícia, nem tratador dos polícia viado, nem dos dôtor, médico, nada. Sou amigo, falei pra ele: "Vai, marcão. Fica falando besteira aí, uma hora quem num pode tá escutando e cê dança". Boca fedida maldita do cão! Falou merda no bequinho bem na hora que os bruto passava. Aí, meu amigo, virou bonequinho de judas na mão dos cara. Nem foi trabalhá cinco dia. Costurou as costa, costurou a boca tamén. Nem bom-dia mais pra nóis agora.

E tá dando dor no corpo. Cachorro latindo e se eu não tivesse travado, ia atrás pra acertá o morfioso na pedra. E tá em cima. Parece. Nem parece não. É. Tá em cima. Que porra é essa? Cachorro latindo em cima? Tá no telhado esse puto? É sonho, mano. Nada vê. E uma gritaiada depois. Sinistro. Um desespero. Os cara tá em cima. Gritando que nem se tivesse fugindo. Batendo. Batida. Martelada. Esse som conheço bem. Igualzinho que nóis faiz rebentando chão de cimento. Nem levanto não. Num é porque não quero, é que não dá mesmo. E um buracão de repente. Facho de luz na minha cara. Aí um truta de capacete põe a cara no buraco e olha pra mim. Capacete preto, capa amarela gozada, num sei o que é. A vista tá ardendo, mas olho pra ele no olho e chamo na bronca.

- Que foi, mano?

- Fica calmo! Não se mexe! A gente vai tirar você daí.

Ele fala pra eu ficar calmo, mas ele memo tá num puta agito. Grita com outros caras lá fora. O buraco vai aumentando e aí tem vários iguais, de capacete e capa amarela feia. Ô corzinha filho-da-puta, será que esse povo num percebeu que tem cor mais bonita? Fico em silêncio, só manjando. Quando eles me tiram, vejo os companheiros lá longe, na borda da montanha de entulho. Jean me vê de olhos abertos, olha nos meus olhos, bastante mesmo, grita "graças a Deus", abraça os outros. É que nem o timão fazendo gol, todo mundo gritando muito. O gol sou eu. Jean chega perto, quando eu já tô na maca, pega na minha mão e dói muito. Aí chega dor, dor memo. Dói as costa, doi as perna. Chegou luz, chegou a dor junto e percebi que tenho corpo e tá tudo fudido. Minha mulher tá lá também, junto c'a minha mãe, chorando junto. Elas num se bica, dois mundo que num dá liga, mas naquele dia deu. Tão juntas, uma do ladinho da outra, pra me ver saindo vivo daquela doideira. Eu já percebi que foi um acidente, percebi faz tempo, mas faço de bobão pra não ficar pior. Porque senão eu choro também. Elas tão perto da ambulância e quando chego perto elas fala "cê vai ficar bem" e "eu te amo". Tem que acontecer essas porcaria pras pessoa ficar junta, pensar diferente, pensar melhor nas coisa. Vou erguer a cabeça mas a moça de branco põe a mão com luva fina de borracha na minha testa e não deixa. E meu pescoço tá tudo travado na peça bege que ela pôs. Falo deitado mesmo. Sem levantar a cabeça olho pra elas. Encho o peito pra falar como se fosse a última coisa que eu fosse falar na vida: "eu também amo vocês!".

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