Meu joelho tá fodido da pelada de domingo, ainda. Mas eu corri igual traíra caçado. E todo sujo! É engraçado: preto pra ter sujeira aparecendo bem, só branca. Pó de cal na cara, nos braço, que prega igual praga e não sai nem com escovada. A suadeira dessa pressa juntou com o suor das batida da enxada na massa da parte da tarde. Esse suor daqueles diário, que ainda num tinha secado. Correndo, correeeeendo e perguntando o que Deus queria de mim. Trabalhei o dia inteiro, cheguei em casa e ganhei isso, o medo explodindo na cara e no peito. Foda. Cidão tava lá afogado na pinga. Foi terceira vez na semana. A dona Zefa chamou a bolância de novo. Essa carrinha branca é a limusine deles. Motorista pagando de chofer pro cachaceiro. Aí nego bateu um fio desesperado e a mina falou que num tinha nenhuma pra fazer a assistência. Aqui pra eles! Meus bago pra eles. Ainda bem que era perto.
Tava uma gracinha o Cidão vermelho de boca aberta, mais aberta que porta da sala da casa dele, com os cara da enfermagem tratando ele de coitado. Dez minuto que eu tinha passado antes e eles tudo lá no mesmo lugar, os tartaruga. Assim até quem não precisa, morre.
Olhei e vi: tava no jeito a menina co'a chave no contato e a portaiada fechada. Menos a do motorista. Nem regulei banco não. Virei nanico no lugar de Golias. Na primeira andança, o carro do tio Zeca do mercado teve que brecar bem na frente e quase bati. Prometi que pedia desculpa depois. E pagava os trinta conto que devo pra ele, junto com o arrependimento. De fazer o U no quarteirão foi dez segundos. Onze, capaz. Abri as porta da bolância e não tinha maca. Lógico. Ficou lá no Cidão. Aí resolvi com a espuma desencapada lá de casa mesmo, pra acomodar a dona Vera.
"Ô Valdo!", gritei no corredor e o ele pôs uma vista de alarme no muro. "Num é pega dos ôme não, lôco, sossega. Me dá uma força aqui em casa, que eu tô desesperado". Ele pulou ligeiro e foi no encontro, mano de fé mesmo, na presença qualquer hora. Bati a mão na porta do mocó e a dona Vera continuava deitadinha do jeito que deixei. Só que mais pálida.
- Jesus, que que aconteceu, Pelé? - Fui pegar o colchão velho enquanto explicava. - Acho que tá infartando, mano. Tô indo pro hospital.
- Tá indo? Que jeito?
- Bolância. - Fui lá fora, ajeitei a espuma na traseira da carrinha, voltei e pedi. - Pega nos pé, irmão, me ajuda a levar ela. - Faz tempo que não consigo mais com o peso da minha nega véia. Engordou barbaridade. É claro que o Valdinho num entendeu a questão da espuma, nem da bolância vazia, muito menos quando me viu trancar na direção arrancando pro hospital.
Cheguei brecando forte e todo mundo em volta olhou besta pra mim. Aproveitei a audiência e apelei no berro pr'um companheiro parado do lado da porta de vidro: "ô filho de Deus, me dá uma mão aqui, tirar minha senhora pra emergência!". Ele veio correndo. Lá na recepção, pedi arrego pro povo de branco que tava lá pra dentro com soro e injeção na mão. E um lesado me vira e me fala que tem que aguardar porque setor de emergência tá cheio. Quase rachei o mármore do balcão no murro, falando que se não socorresse a dona Vera eu ia chuchar a porrada em todo mundo. "Cês num tem mãe não, seus viado? Vai, se mexe aí!". Foi nessa hora que a polícia chegou me dando voz de prisão. Afinei porque não tinha mais recurso na telha. "Ô dôtor... ajuda, pelo amor de Deus, minha mãe tá morrendo. Fala pra eles atender, ela vai morrer, dôtor, só tenho ela na minha vida". Fazia tempo que eu não chorava. Chorar assim, de pôr água pra fora do olho. Porque chorar seco e sem som, desse jeito eu choro todo dia. Chorei, mas ninguém amoleceu não. O da frente tirou algema e me prendeu. Antes de entrar na viatura ainda falei pro truta que me ajudou. "Irmão, te devo uma grande. Mas pelo amor de Deus, faz o povo aí atender a dona Vera. Dou a vida pra Deus pra ela viver". Já dentro do carro fecharam a porta abafando som de fora, mas entendi direito o que ele falou. Jurou que ia ficar na cola. Indo pra delegacia, algemado, juntei palma das mão e rezei um pai-nosso e uma ave-maria para a minha mãezinha. Minha força, minha protetora, a que sempre teve paciência e aguentou firme cada uma das minha cagada. A Dona Vera sempre foi uma fortaleza na vida e tava eu lá rezando agora pra ela ser forte na saúde.
Parecia um corrimão dos grosso, mas num tinha escada. Era recurso de prender algema na parede atrás da cadeira onde eu passei a noite. E podia ter a melhor cama do mundo e eu solto, sem essa merda prateada, mano, eu não ia dormir. Cabeça lá na minha mãe e querendo saber como ela tava passando. O cara do computador, que registrou o ocorrido, tava lá trampando e meio que deu atenção, um pouco, pra minha história. Contei pra ele, e se não tivesse ninguém, eu contava pro Cristo no crucifixo da parede. Eu tinha que falar. Eu tinha que soltar essa dor da angústia, que doía mais no peito e na garganta que se eu tivesse tomado soda. O cara me trouxe uma marmita. Comi pra não pensar que sou ingrato porque se fosse qualquer outro da polícia acho que nem cafezinho dava. Engoli três garfada assim na força.
Tava clareando e eu lá ainda. E chegou o cara que me ajudou na frente do hospital. Chorei sem vergonha nenhuma. Chorei, mano, acho que mais do que no dia que nasci. Vi o cara e chorei. Pensei o pior. Mas ele veio que nem um anjo pra dizer que a dona Vera tava em repouso e tinha melhorado. Nem sei se ele podia estar lá, se liberaram ele pra conversar por causa da minha situação, mas pedi pra ele anotar o endereço e jurei que qualquer dia vou garantir um churrasco no barraco dele. Valdo também tá na lista da gratidão. Só pra garantir, passei pra ele um papel com endereço e pedi o favor que prometi ser o último, que não ia abusar mais daquela bondade que parecia que nem existia mais: pedi pra ele avisar a internação da dona Vera pra minha irmã.
Não sei quando vou sair, não sei se vou sair, não entendo dessas coisa de lei, nem das brecha dela, nem das distorção. Ideia nenhuma se eu ia pra casa de governo ficar trancado uns ano ou se não tinha vaga e eu saía antes do almoço. Mas nem era importante mais. Se eu ia demorar ou apressar, o que queria era ver a dona Vera sorridente e acolhedora, do jeitinho que eu vi quando saí de madrugada pro serviço.
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Desobras
Short Story"... ó príncipes, meus irmãos, arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?". (FERNANDO PESSOA - Poema em linha reta) O sujeito que propositalmente provoca o próprio desquite indo...