Nossa Canção

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Eu a errada, a fechada, a que guardava mil coisas e que não desejava expressar nenhuma delas.

Eu que me vestia de preto, que tinha os cabelos cacheados, cheios e fora de moda e que não pintava os olhos e não pintava os lábios.

Eu que vivia entre notas e melodias.

Eu que para eles era estranha não de um jeito cool, mas de um jeito inapropriado.

Eu que não me importava.

Às vezes a ignorância é a maneira mais efetiva de fugir da hipocrisia.

Eu estava rodeada de hipócritas na maioria das vezes.


Eu era realmente boa em fugir sem sequer me mover. Eu era boa em calar mesmo que meu peito gritasse. Eu era ótima em me esconder mesmo que todos me vissem e ninguém se importasse.

Eu era realmente boa em fingir e simular muitas coisas.

E era péssima em negar que o amava.

E eu era realmente boa nisso também. Em amá-lo mais que tudo, em amá-lo mais a cada momento.


Desci as escadas com os fones no ouvido desejando poder fazer o menor ruído possível enquanto me encaminhava rapidamente até a cozinha e abria a geladeira pra pegar a jarra de suco.

Odiava quando meus pais viajavam a negócios.

Era de se esperar que Douglas e eu pudéssemos estabelecer uma espécie de paz momentânea enquanto nossos pais estavam fora, mas o que acabava acontecendo era algo terrivelmente diferente. Meu irmão se convertia em uma espécie de homem das cavernas ruidoso e sujo e eu me convertia em prisioneira dentro da minha própria casa.

Não valia a pena lutar.

Eu havia lido inúmeras vezes que uma pessoa inteligente sempre escolhe suas batalhas e Douglas era uma batalha perdida.

Escutei o som da campainha um pouco depois de passar totalmente despercebida pelo grupo primitivo de garotos entre dezoito e vinte e tantos anos que brigavam e gritavam insultos na frente na tela plana da TV da sala enquanto escolhiam mais uma vez seu time e jogadores para a próxima partida.

Revirei os olhos e me aferrei ao saco de batatas e a meu copo de suco enquanto subia vagarosamente a escada que me que levaria diretamente de volta ao meu refúgio e me permitiria escapar daquela triste e torpe reunião de testosteronas.

- Meg abre a porta.

Senti meu sangue ferver enquanto pensava por uma fração de segundos se deveria matá-lo, desligar a TV e começar uma guerra ou deixar o conteúdo do meu copo cair sobre seu precioso videogame "sem querer".

Mas me contive.

Isso é o que Douglas teria feito no meu lugar.

Eu não queria me parecer em nada com ele.

Apoiei meu copo na mesa e caminhei até a porta arrastando meus chinelos e meu pijama com estampa de caveirinhas enquanto repetia a mim mesma que faltava muito pouco para que meu irmão entrasse na faculdade e começasse a trabalhar na pequena empresa dos meus pais.

Talvez assim ele finalmente se transformasse em um adulto.

Talvez assim ele simplesmente evoluísse como todos os demais da nossa espécie.


Abri a porta e me deparei com seus olhos. Eles brilharam em tons quase improváveis e seus lábios se estenderam em um amplo sorriso. Todo o meu corpo estremeceu em sinal de alerta.

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